Entre a Ironia e a Sinceridade

Texto de Marcelo Panguane

Só se escreve quando se está em fúria,
em infelicidade, em desamparo, em perdição!
RITA FERRO

          Um dos maiores poetas do nosso país a residir na cidade da Beira, no centro de Moçambique, o Heliodoro Baptista, fez questão de quebrar um silêncio editorial duma década com o livro Nos Joelhos do Silêncio, numa edição primeira da editora portuguesa Caminho, na colecção Outras Margens, e que levaria um prestigiado critico literário a escrever estas significativas palavras: “Comecemos pelo fim: Nos Joelhos do Silêncio é dos melhores livros de poesia escrita em língua portuguesa que tive o prazer de ler este ano. Isto não é um juízo, muito menos um julgamento; não tem a corpulência de uma apreciação; diz o que diz, vale o que vale, porque tem de ser dito”. Dissemos, na altura, recorrendo as palavras da escritora portuguesa Rita Ferro, que a poesia contida nesse livro era uma espécie de ajuste de contas, uma tentativa de corrigir a vida ou o destino, um repúdio pela ementa que nos põem à frente. Dissemos também, corroborando, que só se escreve quando se está em fúria, em infelicidade, em desamparo, em perdição!

       Quando tomamos conhecimento que o poeta se preparava para apresentar um novo livro, ficamos com a curiosidade de saber que espécie de conteúdos e propostas estéticas nos traria desta vez o poeta de Chiveve. Uma fugaz leitura do seu novo livro, intitulado Moçambique Song, oferece-nos a imagem desse discurso intervencionista e inconformado, o mesmo labor da palavra e talvez uma viagem cada vez mais profunda ao intricado universo da nossa sociedade e das nossas vidas. Trata-se de mais de 80 poemas e duas prosaspoéticas, sendo maioritariamente inéditos, exceptuando alguns que, reescritos e depurados, deviam caber, segundo nos disse, numa “antologia descartável”. E descartável porquê, perguntamos em conversa telefónica. Heliodoro Baptista respondeu-nos, entre a ironia amadurecida e a sinceridade de quem respeita a palavra: “Há um momento em que se descobre que o que escrevemos foi já dito por alguém há séculos, milénios, qualquer ideia, pensamento, frémito, movimento físico ou gestural, da literatura à política representam, diria, a cristalização de coisas de outros, de muitos povos que nos precederam em qualquer continente! J.J.Borges já disse isto por outras palavras, Fernado Pessoa também. Devemos ser humildes e aceitar, em defenitivo, que somos crioulos; e basta ir à História antiga para nos olharmos ao espelho. Até a Bíblia, o Alcorão, textos de Gerónimo, famoso chefe ameríndio, ou Confúncio, confirmam esta virtualidade”.

        Sobre Heliodoro Baptista já escrevemos várias vezes e sabemos que ele é imprevisível como todos nós, apesar de uns mais do que outros. E há muito que temos esta quase certeza: a de que ele é, endógeno, intimista mas também voz dual e plural, um dos bons poetas moçambicanos da literatura escrita em português. E como outros livros dele, este Moçambique Song só vai surpreender quem nunca leu os escritos deste poeta a quem seguimos há mais de vinte e cinco anos as pistas e lhe pressentimos “o voo para dentro do voo”, pelo qual sempre lutou, polemizando até, criando sem defenitivamente o desejar, muitos juizos injustos sobre o seu carácter, personalidade, atitude individual (ou individualista) e a sua legítima presença e passagem pelo mundo. Ignoramos que a uma simples reflexão, e sem recorrências psicológicas (ou filosóficas) profundas, quase em ideia ou conceitos básicos, os homens são iguais mas todos diferentes. E que ninguém é mais perfeito do que o outro, civicamente, só como exemplo. E que a interrogação permanente sobre o Amor, a Vida, a Morte, o Presente, o Passado e o Futuro não são, não deviam ser nunca, preocupação subjacente apenas do escritor, do poeta, do académico. Todo o ser humano, demónio ou santo, pensa. E sofre, ama, adoece, ri, conhece o sabor da lágrima, se maravilha permanentemente com o que observa, sejam o voo da ave, a sombra do arco-íris, a mão que assassina, a voz que reprime, mente ou afaga o Outro.

       Heliodoro Baptista publicou seus primeiros textos aos dezassete anos em diversos jornais. A morte da mãe foi decisiva em tudo. Pareceu-lhe que o mundo havia desmoronado. Somente a poesia se tornou capaz de o salvar desse holocausto emocional. Escreveu intensamente. Soergeu-se então dos escombros a que essa perca o remetera. O país ganhou um poeta. Um proeminente jornalista cultural moçambicano, Nelson Saúte, também exímio cronista e cultor de poesia, tornou-se no patriarca dessa elogiável iniciativa chamada Os Habitantes da Memória inserida na colecção “Encontro de Culturas”, com o beneplácito do Centro Cultural Português, Praia, Mindeloa. Nessa memorável obra Nelson Saute viria a fixar em aliciante conversa a conturbada trajectoria de Heliodoro Baptista. Os Habitantes da Memória tornou-se uma importante fonte de pesquisa para os que pretendiam compreender o processo de formação e de afirmação da literatura moçambicana, facto que levou João Nuno Alçada a falar de “um justo equilíbrio entre memoria e esquecimento, literatura, cultura, entidade nacional, hiostorias indviduais e colectivas da moçambicanidade, varias vozes acordadas pela acuidade das perguntas sao ouvidas nestas paginas transformadas em púlpito, ou banco de tehstemunhas, onde falam os habitants da memória de um povo”. E essa memoria fala da genese. Da maneira como tudo começou num jornal chamado “Voz da Zambézia”. O Heliodoro Baptista e Jorge Viegas, seu contemporâneo, comecaram a publicar nesse modesto orgao de infornacão influenciados por escritores como Régio, Torga, Graciliano Ramos, Tosltoi, Rui Knopfli, Craveirinha. Sabe-se que mais tarde, Eugenio Lisboa, o poeta da Mafalala, Rui de Nogar e ainda o criador das Mangas Verdes Com Sal, entre outros, que o receberam e incentivaram, a ele se referiram várias vezes. Estava-se em 1972 e o poeta acabara de sair da adolescência “chuabense” para a então Lourenço Marques, gigante mosaico pluricultural.

Desenho de Joaneth

       Premiado em 1988 pela Gazeta de Artes e Letras, página cultural incontornável da revista Tempo – pelo emblematico livro Por Cima de Toda a Folhaobteve o Prémio Nacional de Literatura (Poesia) em 1991, pela primeira vez atribuido pós-independência nacional. Além de fazer parte de muitas antologias, figura no duplo CD “Mãos Dadas” editado em Manaus, Brasil, em 1994, recolha da mais representativa poesia em lingua portuguesa, principiando pelos antigos (mas sempre novos) clássicos como Luís de Camões. Heliodoro Baptista, para lá do livro citado atrás, escreveu A Filha de Thandi,a cujo parto final assistimos pessoalmente em Maputo, em 1990, livro que inclui um outro, Os Materiais do Amor, o qual inspiraria outros poetas para um mesmo título, não como plágio, mas como intersecção fraternal, e anos mais tarde, em 2005, Nos Joelhos do Silêncio, saído em Portugal pela Caminho, ao qual o autor destas linhas se referiu em breve e modesto comentário crítico, numa das páginas de um prestigiado jornal.

       Este Moçambique Song, seu quinto livro, sairá simultaneamente em Portugal e Moçambique com o apoio total dos Caminhos de Ferro de Moçambique, uma instituição que tem vindo a ensaiar diversos e elogiáveis apoios a iniciativas culturais. A coordenação da produção de Moçambique Song pretence a dois Antónios, um o Sopa, outro o Libombo, sendo a ilustração da capa portuguesa pertecente à artista plástica portuguesa Ivone Ralha, a mesma que ilustrou o livro Nos Joelhos do Silêncio. Sabemos que o novo livro do Heliodoro Baptista vai ter o privilégio de contar com uma nota introdutória do poeta Luis Carlos Patraquim, a residir em Lisboa há vários anos, lugar onde decidiu construir o seu castelo afectivo e literário, desde os tempos que já lá vão, quando se apercebeu que a sua escrita não correspondia ao tipo de valores que era preciso veicular, e o que se tornava necessário veicular, segundo ele próprio, era a gesta épica que tinha nascido nos santuários da revolução. Mas isso é uma história.

       A relação bastante significativa que o autor destas palavras vem mantendo ao longo dos tempos com o Heliodoro Baptista permite-lhe afirmar que o poeta se encontra assolado de dois males que o apoquentam: os da alma e do corpo. Os da alma não lhe preocupam porque os afectos diversos que lhe são dispensados por todos aqueles que desde sempre estiveram à sua volta se encarregaram de o curar. Por outro lado, o exercício da escrita, assumido como supremo modo de vida, vem o mantendo incólume a todas as intempéries. Os males do corpo, infelizmente, fugiam do seu domínio, ele que sempre esteve habituado a contornar as palavras, habilitado a colocá-los a favor dos seus mais profundos intentos, estava enfim, pela primeira vez na vida, refém do destino e isso apoquentava-o. A doença abatia-o dia após dia. Até que a notícia que todos receavamos chegou: “O Heliodoro Baptista foi se embora”. Espanto. Desolação. Incredulidade. O desaparecimento do poeta amaldiçoado mais de mil vezes. As lágrimas derramadas em silêncio. Ninguém, então, pronunciou a palavra morte, que esta apenas acontece aos outros, aos incautos, aos homens sem nome nem glória, aos desprevenidos da vida, e Heliodoro Baptista se tornara demasiadamente grande, um verdadeiro imbondeiro plantado nas margens do Chiveve, para que o destino decidisse oferecer-lhe esse inconcebível desfecho. O Heliodoro só podia ter empreendido uma breve viagem para um desses lugares aonde os poetas de vez em quando decidem buscar o refúgio para aprimorar as palavras. Não podiam existir quaisquer dúvidas que o poeta regressaria ao nosso convívio mais cedo do que se julgava. Mas para o nosso desespero o poeta nunca mais voltou. Nunca mais. Tornou-se cativo desse outro mundo desconhecido que a morte oferece.

          Heliodoro Baptista, apesar dessa possível grandeza que a sua poesia poderia conceder, tornou-se um “poeta em silêncio”, para se evitar dizer que foi um poeta silenciado, expressão que poderia nos remeter a outros juízos que passariam por se querer saber quem, na verdade, o silencia, e por que razão o faria, muito embora se saiba que o Heliodoro Baptista manteve sempre um afastamento altivo com as instituições representativas do poder instituído e do alto do seu “castelo”, nas margens do Chiveve, sustentou duas lutas: uma com as palavras que escrevia todos os dias, religiosamente, como se fosse para se salvar das incongruências da vida, e uma outra luta contra todos aqueles que, e isso o disse repetidas vezes, o estavam a atormentar. Tratou-se de lutas que duraram o tempo que durou e ao longo das quais o poeta se manteve cada vez mais solitário, distante, incompreendido, mas apesar de tudo admirado por muitos. Ganhou nesse imbróglio a poesia que foi escrevendo para se redimir dos seus pecados e injuriar os seus algozes.

O mapa das verdades tem de ser outro;
sobrevivemos de um extenso dicionário
tradicional de mentiras.
Já queimaram a bandeira do lobolo,
os xiricos decidiram-se pelo silêncio do canto.
A fisga e o carrinho de lata
são peças raras de museu.
Isso dói mais?
Sabe-se um pouco a gramática,
a praxe das palavras.
Mas não te iludas, irmão do Zé e do Nogar,
com a sintaxe dos novos oráculos.
Descolonizamos o quê, me digam,
se o tempo desprende-se-nos
da ponta dos dedos? Já não interessa
saber quem matou o Cão Tinhoso
e porque Malidza é uma pedra preciosa
se os nhamussoros vivem no fundo dos rios.
Isso dói tanto?

        Mesmo depois da sua morte a sua poesia e o seu nome continuam silenciados. Sobre o Heliodoro Baptista não se debruçam os interessantes estudos que vem sendo elaborados um pouco por toda a parte. São escassos ou mesmo inexisten tes as homenagens sobre a vida e obra do poeta. Pouco ou nada se sabe sobre os seus escritos que se supõe serem bastantes. Escassas são as vozes que reivindicam a edição desses escritos. Morto o poeta, tornava-se obviamente fácil matar a sua poesia, ou pelo menos evitar que ela pudesse se tornar perene. Creio, contudo, que não existe absolutamente nada capaz de asfixiar o belo, a genialidade, a poesia em riste. Absolutamente nada. Heliodoro Baptista já o sabia quando decidiu escrever:

        Creio que ainda estamos num processo de descoberta deste poeta de Moçambique cuja obra somente permanece como monopólio dos saberes académicos. O conhecimento dos seus escritos não se esgota apenas na análise de obras tais como A Filha de Thandi, muito menos com o Nos Joelhos do Silêncio, simples materiais de referência perante um vasto espólio que um dia, se os deuses assim o determinarem, teremos a grata oportunidade de conhecer. Quando assim acontecer, estaremos, finalmente, em condições de apercebermo-nos da perca que representou a morte do Heliodro Baptista para a literatura moçambicana e para o universo da poesia que se escreve na língua portuguesa. Chegados ao fim destas parcas palavras deixemos que o poeta se despeça:

“Como em outros poetas, também em mim, anuí:
não há a probabilidade de me render.
E se o horizonte oscila, em seu remexer,
me cago no tédio, para todos e para ti!”

***

Marcelo Panguana nasceu em Março, em 1951, na cidade de Lourenço Marques, atual Maputo, capital de Moçambique. Escreve desde o momento em que conheceu as primeiras letras do alfabeto. Começou por escrever pequenas histórias para as páginas e revistas culturais. A página literária “Diálogo”, do Notícias da Beira, foi o espaço onde começou a amadurecer a sua escrita. Em Maputo, junta-se a um grupo de escritores do projeto da revista “Charrua”. Deste grupo nasceram alguns dos que constituem, hoje, a nata dos melhores escritores do país. Foi fundador da Editora Lithangu.

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