Escrito por Celso Muianga

Vista a esta distância que o tempo impõe é possível reconhecer na fotografia os rostos de algumas figuras emblemáticas que frequentavam a sombra do limoeiro da esquina entre as ruas Mário Esteves Coluna e da Imprensa. De calções e perna cruzada sobre a fralda dos calções, o senhor Paulo Magule, doutro lado, o portentoso King Fau, célebre professor de educação Física, nas décadas 80 e 90. Sentado e sorridente numa amena cavaqueira, o senhor Mateus Tembe ao lado da estrela da companhia, o músico João Cabaço. Naquela roda animadíssima de domingo, ainda reconheço, o senhor Fernando Coelho, a apagar uma beata de tabaco com o chinelo e a deliciar-se da marmita que tinha levado para o ringue, logo cedo. E num canto, um jovem que parece-me ser o Rui Magule, a cobrar algo ao pai para uma ida à matiné da São Gabriel ou uma fuga inconfessável por aquelas alturas para a Quinta Jazz Clube. Amós Tembe, com a guitarra em riste dedilha de olhos fechados, como quem reza. Amós tinha acabado de chegar à aquele chão de domingo. João Cabaço cantava: «Hi Mahalaaah. Hi Mahaalaah, oh kussa hi mahalaalaahh». Por que logo Amós Tembe viu naquele momento uma oportunidade para brilhar. E até imitou várias canções, com a cumplicidade tutelar do mestre João Cabaço. Eram assim as tardes no quintal da família Fau. A fotografia de Gil Kanhanga, um recém-regressado da RDA. Gil encontrou o seu ganha-pão nesta arte de eternizar os momentos da vida. Montou o seu estúdio fotográfico Kanhanga, ali na Floresta, mas quando viu que o negócio não dava certo mudou-se para o México. É assim que os meus amigos chamam o bairro da Matola «C». A famosa Floresta era um complexo montado onde hoje impera o Mimmo`s do Parque dos Poetas. Madoda, Gilvino, Leão, Hélder, Domingos e Rufino eram os leões da floresta do futebol de salão.
Foi no calor desta nostalgia que a notícia da morte de Amós Tembe caíu-me como se fosse uma bomba. Voltei a olhar para aquela fotografia dos anos 90 e constatei que praticamente todas as pessoas esculpidas por aquele retratista já não estão entre nós, carne e osso, à excepção do jovem Rui Magule. O tempo, esse grande animal sem idade não perdoa. Tratei logo de telefonar ao Carlos Alberto para confirmar se foi o Amós, quem nos seus tempos áureos teve uma vida faustosa, de puro aristocrata em Nampula e na Beira, no Hotel Embaixador. «Não, primo. Foi o Arão Valeriano, o Ndjira». – atirou certeiro, o irmão gêmeo do Titó.
Amós Tembe era uma biblioteca itinerante da Matola. Um músico para todas circunstâncias. Um boémio que se lembrava de regressar à casa, nos tempos, ali na rua Régulo Hanhane, assim que se lembrasse desse dever. E muitas vezes esquecia-se. A estiagem tem destas coisas. E obrigava-o a cavar tão fundo a terra para encontrar amigos generosos e simpáticos, como ele próprio. Amós perdeu a vida justamente neste mês do 50.º aniversário da minha, da nossa cidade. E Carlos Tembe entra na estória. É justo e obrigatório. O edil, que depois de uma tarde passada a jogar basquetebol no parque com a rapaziada, já lavadinho foi ao único shopping, na que verdade era uma loja de conveniência da Estação de Serviços Madruga.
O spar ainda era uma ideia vaga dentro do parque municipal, onde a malta fazia a festa nos campos de basquetebol e andebol. Doutro lado do parque hoje cresceu a floresta de vidro e de betão, eram campos de futsal, voleibol, andebol, ténis, muito praticados nos tempos dos russos. Um dia vou dedicar-lhes umas linhas… Mas entretanto, o império de betão chegou e fez-se valer, com algum exagero e falta de memória, à mistura. Coisas muito nossas…
E quem estava jà a porta da loja de conveniência era o próprio Amós Tembe, a conversar com alguns amigos de ocasião. Este não perdeu tempo. Ofereceu-se a acompanhar o edil, com uma saudação efusiva, «como vai isso, sô primo?». Costumavam falar sobre música e demoradamente sobre a paixão dos dois Tembes, o JAZZ. Carlos Tembe, já no interior do nosso «shopping», foi à banca de jornais e revistas. E mais tarde, ao chegar à caixa de pagamentos, a surpresa pronunciou-se em voz alta. As contas não reportavam só os jornais que levava no sovaco, nem o pão ou talvez a garrafa de vinho na cesto de compras. «O seu primo levou duas garrafas, senhor presidente». Sem muito a fazer ou justificar-se, o edil pagou e saiu sorridente, acenando à senhora do caixa. Carlos Tembe já não teve oportunidade de despedir-se do seu primo Amós Tembe. Ele já tinha dobrado a esquina da dona Fáuzia e passado o Posto de Saúde, em direcção à Casa Guida, num passo acelerado, dos seus tempos de professor de educação física. Se por algum acaso, por estes dias, cairem gotas insistentes lá de cima, não liguem. É o brinde dos primos Carlos e Amós, numa sessão improvisada de jam-sessions, com canhú de época e abraços repetidos.
Obrigado, Amós Tembe!