“A arte não tem sensatez” – Adecoal

Sob o colo, uma caixa de som que quando os fios em falha na conexão se conectam liberta a música que desenha o riso no rosto de Adecoal, nome artístico de Alberto Correia. O olhar não esconde. A mirar as pequenas chaves de fenda, assume: “não consigo trabalhar sem música”.

Ao seu redor, no atelier e estúdio, instalado no pátio de um prédio no Alto Maé, em Maputo, estão telas acabadas, algumas em curso, camisetes com pinturas de rostos, tinta, pinceis e outro material de trabalho.

Enquanto a operação de ressurreição da caixa de som não se concretiza, numa cadeira próxima uma subwoofer reproduz King’s Disease, o mais recente álbum do rapper norte-americano Nas, conectado ao smartphone. A música vem do Youtube. “Ainda não ouvi bem este álbum”, esclareceu.

Uma adolescente atenta observa, no interior do estúdio, o retrato de um rosto feminino de semblante enigmático. Um olhar preso em sabe-se lá. O (in) verso é o reflexo?

Depois de algum tempo ali compenetrada, resolve retirar-se. Até amanhã Mano Adecoal, despede-se. “És sempre bem-vinda”, responde o anfitrião. Nisso chegam dois adolescentes. Um apoia na empreitada da caixa de som e outro tenta concluir, de forma tímida, com receio de ser visto, a pintura de um retrato.

É um dia cinzento, a chuva ameaça, mas não há certeza que vá cair, fazendo-se assim metáfora dos dias que vivemos. É fim de tarde. A música já corre na caixa ressuscitada. A selecção inclui funk e demais música negra norte-americano. “Eu cresci a ouvir isto”.

Adecoal é fruto do meio urbano. Cresceu a ver televisão, acompanhou assiduamente Dragon Ball, Pokemon. Jogou Street fight e outros vídeos jogos como Super Mário.

Mais novo de cinco irmãos, ainda chegou a tempo de ver e ler almanaques do Ti Patinhas, Turma da Mónica e o rato Mickey.

Órfão do pai, que lhe trazia material de pintura depois de descobrir que os cadernos estavam cheios de desenhos, não pôde frequentar a ambicionada Escola de Artes Visuais. Na conversa com os amigos que estudavam lá, soube que a instituição tinha uma boa biblioteca. Passou a frequentar. Seguiu-se a Biblioteca Nacional com a qual alternava a da escola. Foram tardes sentado sob a cadeira de madeira. A internet, afirma, veio ampliar as suas possibilidades de pesquisa. “Vais a Google e te resolve”.

Sentamo-nos para o Adecoal nos contar como começou o seu interesse pela pintura, pelo design de peças de roupa e docência de desenho. Acompanhe a entrevista nas próximas linhas. 

Como é que começa a tua relação com as artes?

Olha, comecei a desenhar por curiosidade, aos quatro anos de idade. A cena de olhar para o mundo…as pessoas que estavam a minha volta…os conteúdos digitais que eu já acompanhava, na altura, principalmente a televisão, a [leitura] de almanaques. Sou o mais novo de 5 irmãos que me deram muita informação desde. A minha curiosidade foi aumentando.

Entrei na escola primária sempre a desenhar, os meus cadernos eram borrados em desenhos e personagens dos desenhos animados (Dragon Ball, por exemplo) que eram os desenhos daquela altura.

Aquilo foi ficando sério até que o meu pai decidiu investir o mínimo para que eu pudesse continuar a fazer o que eu gostava. Ele comprava lápis de cores, arranjava papel e algum material básico para eu continuar a praticar. Quando conclui o nível básico ainda a desenhar, infelizmente não consegui entrar na Escola de Artes Visuais, porque o meu pai, que era a pessoa que dava a direção, acabou falecendo, na altura. Podia ter desistido, mas não desisti, continuei a desenhar do meu jeito. Ia à Biblioteca EAV, à Biblioteca Nacional e, depois, com muita intensidade, comecei a filiar-me à Internet. Lá eu buscava conteúdos sobre como desenvolver as técnicas com poucos recursos e aprendi, assim, a pintar e a desenhar. Fui, também, me filiando a alguns artistas mais velhos que já tinham materiais e outras condições.  Conheci o Claudino Braga, a quem chamo de mestre, que me ensino a pintura à óleo.

A cena mais terrível, para mim, sempre foi a pintura à óleo. Mas eu dominei tanto a pintura à óleo graças ao Claudino, um amigo que já era muito avançado. Eu sou muito grato a ele, por ter disponibilizado o estúdio e o material dele para que eu pudesse alavancar aquilo que eu gostava de fazer. Depois que me afasto do Claudino, eu vou atrás dos meus próprios materiais, continuo com mais desafios e aprendo novas técnicas, como a pintura em roupa, que hoje é uma das minhas maiores referências.

Biblioteca?

Eu tinha amigos e muitos conhecidos na altura que estudavam na Escola de Artes Visuais. Mas, eu, como não tinha a oportunidade de estudar lá, acordava cedo e ia à biblioteca da escola. Fui fazendo isto compulsivamente, porque eu queria desenvolver as técnicas e arte ao seu nível mais profundo. Não queria só saber desenhar e pintar, queria entender o que eu estava a fazer. Por volta de 2006/7, período em que a Internet ainda estava a chegar em Moçambique acabei conhecendo diversos artistas internacionais, através do Google.

Nessa altura não usava Facebook e demais redes sociais, era apenas no Google onde eu via como [os outros] faziam. O trabalho era incrível e aquilo, de alguma forma, foi me ativando ainda mais para aprimorar as minhas técnicas. A minha vontade de querer fazer aumentou, por causa daquele conteúdo teórico e digital que eu ia a procura.

Aconselhavam-me estudar anatomia humana, que era para entender, também, como funcionam o corpo e os movimentos humanos e, acima de tudo, [para] saber representar. Daí esta minha curiosidade até chegar a ir à biblioteca, foi mesmo por isso.

Durante o teu percurso, foste perseguindo técnicas diferentes ou te apercebeste numa situação em que era já dominavas uma coisa diversa?

Não. Eu fui perseguindo técnicas diferentes, exactamente porque eu queria ser um artista versátil, que pudesse ir a todo o terreno, um 4×4. A ideia de poder surfar em qualquer onda, para mim, sempre esteve patente, porque [para mim] o artista não é aquele que se cinge só em saber desenhar a água no rosto e demonstrar aquela habilidade Hiper realística. Se não consegue expressar o que sente, se não consegue demonstrar que a sua própria mão está patente lá, simplesmente, é uma cópia exacta da fotografia, é um copy-paste, neste caso.

Não acredito numa arte que pretenda simplesmente representar. Então, eu fui buscar um bocado disto tudo para me tornar num artista totalmente capaz. Percebe, eu sou capaz de fazer tudo o que eu quero, do jeito que eu quero, e, ainda assim, ser aceite, porque eu fui aprendendo step by step (passo a passo). Já tive alunos que foram formados na Escola das Artes Visuais, outros formados na Escola Superior de Artes e Cultura.

Aprendi buscando conhecimento (teórico e prático). Fui aprendendo na rua, com outras pessoas que já iam avançadas com isto, o que me tornou versátil, capaz de surfar em qualquer tipo de onda e que, acima de tudo, consegue partilhar isso com as outras pessoas.

O que pretendes comunicar com as tuas artes?

A maior marca que tu tens como ser humano é o teu rosto. Mesmo que se diga que temos sete sósias, a nível do mundo, para mim não és tu, são sósias. Por exemplo, dizem que eu sou parecido com Michael B. Jordan [actor norte americano que interpreta Erik Killmonger, vilão do filme Black Panther da Marvel Comics]. Se puseres a minha cara ao lado da do Kill Monguer, vais perceber quem o Michael B. Jordan e quem é Adaqual. Não é através da unha, do pé ou do pescoço que te posso identificar com facilidade.

Ao chegares ao meu estúdio, a primeira coisa que eu vou olhar é a tua cara. Então, a tua cara tem um código, um código que qualquer pessoa pode reconhecer. A expressão que trazes, ao ser bem representada artisticamente, pode, muito bem, servir de identificação para ti, em qualquer parte do mundo.  Eu descobri como fazer isso e é o que faço nas minhas pinturas.

Para além de rostos desenhas paisagens. Essa transmissão de emoções e do sensível está também nas paisagens. Como é que isso funciona?

Existe uma cena que se chama Psicologia de cores. Porque, psicologicamente, as cores transmitem-nos emoções e movimentam-nos através dessas emoções. Então, quando se faz uma representação, há uma necessidade de que as próprias cores desenvolvam essa representatividade. Quando a paisagem é tão bem representada, transmite a psicologia certa, através das cores, e o cérebro até cria uma animação para a própria paisagem. É muito importante, quando vais pintar, saberes a razão da escolha das cores que estejas a usar e o que queres causar usando as tais cores. Isto é algo que está patente em praticamente todas as minhas pinturas e nas dos meus alunos, como podes ver no meu estúdio.

Estamos a realizar [no atelier] uma exposição [permanente] de trabalhos entre professor e alunos, sem discriminação, que é exatamente para transmitir esta ideia de continuidade e longevidade. Voltando a cor, ela tem um trabalho muito forte no nosso cérebro, que é fazer-nos identificar, através delas, o que está a acontecer num determinado espaço e tempo. Por exemplo, antes de sair de casa, tu escolhes uma camisa, um casaco, as sapatilhas. Não é forma arbitrária, tu escolhes. E, nalgum momento, a roupa que pões identifica-te muito e é muito exactamente por causa da cor.

Sobre a tua técnica para representar movimento…

Para representar movimento, a gente recorre ao futurismo, como é bem sabido. É a cor que determina se vais conseguir criar uma animação psicológica ou não. Então, eu acho que é mesmo por aí. É a cor e o futurismo, que são das formas mais fáceis de representar o movimento nas nossas pinturas.

Voltando a tua história. Estavas a contar que a dado momento começaste a desenhar em peças de roupas. Como é que isto aconteceu?

Na minha luta para me tornar um grande artista, eu fui encontrando alguns obstáculos severos. Um deles era a exposição física dos meus trabalhos. Por eu estar a fazer uma coisa totalmente diferente do habitual, era complicado as pessoas que [não] estavam a fazer as mesmas coisas [me] perceberem. Enquanto eu estava a fazer um movimento para frente, os outros faziam o contrário. Era difícil haver um casamento no mesmo espaço, porque a leitura uniforme das obras, por exemplo, numa galeria, tem sido olhada como algo sensato, mas a arte não tem sensatez. A arte é expressão. Pode ser sensato na expressão, mas essa sensatez não tem de ser propositada. [Espanta-me que entrares] numa galeria, como no Museu Nacional de Artes, e passes por uma obra, a cada minuto. Não te inspira nenhuma emoção. Acho que esta uniformidade das obras foi o que me fez ser afastado, ou não aceite, primeiramente, nestes espaços. Percebi que eu precisava desenvolver um movimento próprio, que independia totalmente daquilo que as outras pessoas fossem dizer, pensar ou achar que era suposto fazer ou não, e comecei a pintar em roupas.

A minha primeira pintura foi do rapper norte-americano 2 PAC, porque é um dos meus maiores ídolos e eu queria experimentar a técnica. Antes tinha feito Batique, fiz um Che Guevara, uma fotografia do presidente Samora Machel, em Batique, em 2008/9. Posteriormente, fui desenvolver essa cena em pintura, a partir de 2013/14 porque percebi que tinha de ter a minha própria história, seguir o meu próprio caminho.

Havia mais facilidade de eu expor a minha obra num suporte móvel do que num suporte fixo, como uma parede de uma galeria ou de um museu, sem com isso estar a dizer que não precise de me expor nesses locais. Percebi que o mundo estava a ficar muito dinâmico, que as pessoas iam ficar com tempo mais escasso para usar estes espaços históricos e físicos, como galerias e museus, e decidi levar a arte para as pessoas. Para o dia-a-dia das pessoas.

Fica uma impressão de que, nalgum momento, ou não te sentiste enquadrado ou recebido ou houve uma rejeição do sistema tradicional de arte e cultura…

Eu acho que, em parte, foi isso. Muitas vezes, como eu disse, tentei participar de algumas exposições e nunca eram aprovadas as minhas obras, e eu nem sabia o porquê. Quando eu ia ver as outras obras, percebia que eram totalmente diferentes das minhas, não sei se eram melhores que as minhas. Na arte não há campeões, não há prêmios de melhor artista, não há isto de melhor ou pior. As minhas obras eram diferentes e acredito que, para a época, eram um pouco avançadas. A minha abordagem era um pouco mais a vontade, porque sempre quis transmitir a ideia de liberdade, de poder fazer o que eu quero, sem ter que me focar necessariamente na mamã com um pilão na cabeça, nas máscaras, e no que dizem que era o nosso quotidiano. Não era esta a ideia que eu queria transmitir sobre arte e sobre Moçambique. Queria transmitir a ideia de um Moçambique próspero, ou com ideias de prosperidade, com ideias de intelectuais, acima de tudo, de pessoas que pensam fora da caixa, fora do perímetro estabelecido.

E eu criei esta ideia, este projeto de “Arte em Movimento” e consegui conquistar o mundo, conquistei as altas passarelas nacionais, tenho obras em vários países: desde América, Ásia e Europa. Exactamente por esta mobilidade, esta dinâmica do dia-a-dia, de as pessoas poderem a qualquer lado com a arte.

Decerto, a tua opção é levar a arte para a rua…

Exactamente, deixar de vitimizar a arte e o artista. Deixar de dizer que as pessoas não apreciam a arte e fazer com que as pessoas convivam com a arte, no seu dia-a-dia, e tenham uma relação de tu para tu com ela. Que consigam partilhar um pensamento, uma história, um conto, um mito, tenham o dia-a-dia com uma obra de arte, que não seja necessariamente ir a um museu para poder ter esta sensação.

Quando tu já vives com a obra, tu consegues que estou inserido nesta realidade. Afinal de contas, isto faz parte também de mim, estas cores identificam-me, animam-me. A simbologia representada através de uma pintura, costura, etc, dá-me uma boa vibração, deixa-me positivo.

É por via disto que entras para o mundo fashion?

Eu sempre tive a cena do fashion inside me (moda dentro de mim). Desde os tempos da Wu-Tang Clan (grupo de rap norte-americano, importante para a história do movimento e relevante, sobretudo na década 90). Apreciava a cena do fashion dos rappers dos Estados Unidos, por exemplo, todos eles com um estilo característico. Eu gostava de ver aquilo, era uma coisa que para Moçambique parecia estar muito distante, mas eu tentava fazer ao meu jeito, ia à calamidade, comprava o que eu podia e ficava um pouco fashion.

Na altura, eu já fazia grafites, mas não sabia a sua finalidade. Fazia nos papéis e tudo mais, mas oNde é que eu podia colocar os grafites? Comecei a fazer clothing design, desenhava roupas de rappers. Desenhava sapatilhas. Sempre tive um estilo urbano, sempre gostei de estar à vontade onde quer que eu fosse. No princípio não levei muito a sério porque não sabia o que ia fazer com aquela habilidade de criar e desenhar roupar. Mas, posteriormente, em 2013/14, eu vou para a Faculdade de Artes, no ISARC, para fazer licenciatura em Design. Por sorte, nós tínhamos especialização em Moda. Interessei-me pela especialização em Moda e fui aprendendo muito com aquilo. Em 2015, participo com uma ex-colega de Faculdade, Noémia Fidalgo Mozambique Fashion Week pela primeira vez, para a coleção dela. Ela ganhou uma viagem para a semana de moda em Milão. As suas peças iam com os meus desenhos, o que foi uma grande emoção para mim. Ela representou muito bem e era uma ideia muito nova. A Noémia deu um bom feedback. Aí percebi que, na Europa, para teres uma roupa pintada por artista, uma pintura original e não um print, é muito caro. Não no sentido de ser impossível de pagar, mas é custoso e tem valor, acima de tudo. Não é pelo preço, é questão de valor que é dado a arte por lá.

A partir dai comecei a fazer as minhas próprias roupas. Fazia, primeiro, t-shirts, antes de fazer roupas como tal.  Atualmente, só visto roupas da minha marca. Eu vendia as roupas para os meus amigos, pessoas com quem partilhávamos as tardes de hip-hop, com quem partilhávamos sociais e eles foram dando input. Mesmo que não quisessem espalhar, quando usassem as roupas, as pessoas já perguntavam.

Então, em 2017, eu lanço a minha primeira coleção a solo, chamada “Anjos e Demónios”, que tratava da disseminação do estigma racial. Era uma troca de papéis, dizia que os anjos podiam ser pretos e os demónios podiam ser brancos. Ser bom ou ser mau independe do teu tom de pele, da tua cultura como tal. Depende do teu carácter, do que te é ensinado desde o berço e do que tu apreendes.

A exposição foi muito bem recebida, o director criativo e fotógrafo Mário Cumbane até fez um documentário sobre essa coleção, o impacto foi muito bom. E fomos tendo outras.

As tuas referências têm muito a ver com o hip-hop e cultura negra norte-americana. Qual é a participação dessas referências no teu processo de produção?

Eu já escuto o hip-hop desde criança e, quando conheci a história e a cultura dos negros norte-americanos, fui-me identificando com uma e outra coisa. Por exemplo, 2 PAC, que foi criado pela mãe, assim como eu, porque o meu pai faleceu muito cedo. Na altura a minha não trabalhava e eu não tinha autonomia nenhuma, ela tinha de se virar para pôr comida na mesa. A minha mãe tinha de fazer alguma coisa para nos sentirmos amparados, por isso é que ela é a minha maior heroína, na verdade. Fui percebendo que na cultura hip-hop havia muito disto. Havia muitos contos, muita realidade, muita liberdade para expressar os sentimentos. Eu deixei-me levar por isso, até hoje. A música é um vicio. Preciso dela para pintar ou criar. Quando o aparelho está parado é um pânico na minha cabeça, porque faz-me bem criar envolvido no som, em música. Não escuto só o hip-hop, escuto também o Reggae. As outras cenas ouço por acidente, já que as outras pessoas têm os seus gostos, tenho que respeitar, mas o meu gosto musical é o hip-hop, reggae, jazz e um pouco de funk, mas não o brasileiro, acho que sou um old school. Houve uma época em que eu só ouvia jazz, nomes como Norman Brown, Joshua Redman, Kenny G, Jimmy Dludlu, Moreira Chonguiça, Ivan Mazuze. Ouvi bastante afro jazz, não gosto muito deste termo, porque o jazz foi criado por africanos.

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