SÁBADO DE EMERGÊNCIA

Escrito por Elcídio Bila

Quando Marito despertou, fatigado, como se um comboio lhe subisse a noite toda, uma bandeja estava ao seu lado, com o melhor das vitaminas. O jovem deslumbrou-se com o requinte. Havia de tudo que se possa saborear pela manhã, até lamber os beiços.

– Obrigado, amor.

– De nada, tu mereces muito mais. – disse a esposa, parada em sentinela na porta do quarto, com roupas que dizem claramente que ela também está na bandeja.

Naquele minuto entra uma chamada no celular, entre hesitações e incertezas, Marito pois-se à escuta, em viva-voz:

– Alô!

 Bro, temos um petisco bem quente e piri-piri sério aqui fora.

Olhou para a esposa a espera que lhe ajudasse na resposta. Mas estavam sem os truques activados, e foi tarde:

– Não pagas nada. Aquele puto que acaba de voltar da tuga pagou tudo e mandou três caixas para a malta.

Desatou um sorriso, fingindo não fisgar a esposa com o olhar.

– Estás a me ouvir? – questionou a voz doutro lado do Samsung, intrigada com o silêncio.

– Estou bro, estou a caminho…. – arriscou, desligando a voz tentadora.

Ela permaneceu ali, sem movimentar nem uma pestana. 

– Amor, sabes…

– Não sei, Marito. E o pior, nem quero saber.

Não precisava usar nenhum instrumento para medir os nervos para se convencer de que ela estava com vontade de rebentar aquele telemóvel. Aliás, vontade de não querer ouvir qualquer desculpa de um fanático pela bebida.

– Estou quase a ficar maluco de tanto ficar em casa. Deixa sair, fico há um metro de distância e levo máscara e luvas.

Ela continuou estática, tipo um militar na porta de quartel, sem emitir nem som nem movimento.

– Entendes? Estou a ficar louco aqui.

Ela deu-lhe as costas nuas e seguiu para sala.

Marito, que já tinha entendido o suficiente a mensagem, pegou no telefone para resolver o dilema:

– Bro, não vou poder ir aí estou em quarentena obrigatória.

– Vai passear, quarentena de quê. Acaba de chegar o Imídio, aquele puto médico, diz que raios de sol são terríveis para coronavírus. Assim estamos aqui no sol.

Ele ficou em silêncio algum tempo, tentando ensaiar uma desculpa, mas a esposa cortou-lhe os intentos lá do outro compartimento.

– Ai de ti, senhor Mário!

– Está bem, até já. – disse ao amigo, pousando o dedo no sinal vermelho da tela.

Desafiada, levantou com todas as pressas:

– Tu não vais a lugar nenhum, e faça-me o favor de comer o pequeno-almoço que te preparei.

Segurou a bandeja com cautela, e afastou-a para ter passagem. 

– Para onde vais, senhor?

– Lavar os dentes. 

– Não estraga o meu humor. Vai comer, lá. Não precisa lavar os dentes.

– Maria, não imita as telenovelas. Aqueles lavam os dentes antes, só não nos mostram.

Desatou em risos a mulher, derrotada. Assistiu, de seguida, a pior cena da vida, nem nos filmes mais horrendos viu tamanha barbaridade: o homem seguindopara o quintal com um copo de água e uma escova.

(…)

 Mariaaaaaa???

O grito ecoava no silêncio da madrugada. Um grito estridente, porém debilitado.

 Mariooou???

Continuou a voz, cada vez mais altiva.

A coitada sacudiu os cobertores para acompanhar a voz. E era mesmo ela a ser bagunçada.

 Mariaaaaa

Passou a mão doutro lado da cama e um vazio aniquilador saudou-lhe.

– Abre a porta!

Mesmo sem os seus pés a obedecerem, saiu da cama e pendurou-se na primeira capulana que encontrou. Abriu a porta e duas lágrimas imploraram por espaço no seu rosto quando viu Marito roto, amarfanhado e cruelmente desfigurado.

 Po-sso ente-rare?

Maria olhou mais uma vez no coitado e desistiu qualquer verbo ao notar que estava descalço, com uma cerveja numa mão e noutra a escova de dentes.

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