Ingredientes do cocktail de uma revolução estética

As utopias clássicas aconteciam em ilhas. A metáfora terra prometida de escritores, intelectuais, políticos. Marx já está a abstrair uma sociedade real a partir de factos concretos – relativos, é certo – e dá luz a um caminho para a terra do nenhures. Na modernidade, século XX, há uma percepção clara de que algumas utopias não se limitam ao debate filosófico ou no universo das ideias.

Os negros norte-americanos, ainda no princípio dos anos 1900, exigem direito a cidadania, a dignidade. Através da poesia, do jazz, blues reflectem sobre a sua ancestralidade africana, mas se reconhecem americanos. Na Europa, os Bolchevique, em Outubro de 1917, derrubam Nicolau II, o último Czar da Rússia e fundam a primeira República Socialista do mundo.

Harlem vibra nos anos 20-40, ao ritmo do jazz, inventa o Swing, revela poetas, intelectuais da estirpe de Alain Locke, Langston Hugues, Claude Mckay, Jean Toomer, Countee Cullen, Sterling Brown. Na região Austral de África, isto é, em Bloemfontein, 1912, é fundado o ANC na África do Sul. O mundo fervilha de utopias.

Os candeeiros da Negritude, esta continuidade do Renascimento Negro de Harlem, acendem e despertam o pan-africanismo e o movimento das libertações. Em Moçambique, o jornal Brado Africano, O Africano, dos irmãos Albazine assumem a posição de reivindicação da personalidade do indivíduo africano, do negro, do moçambicano.

José Craveirinha, Noémia de Sousa escrevem poemas e o primeiro, no jornalismo desportivo, projecta heróis negros (Eusébio, Pantera Negra) num acto político e subversivo, diante de uma sociedade segregacionista, colonial.

Severino Ngoenha aponta a luz, no ensaio “A (im)possibilidade do momento moçambicano notas estéticas (2016)”, para o facto da arte moderna moçambicana ter surgido, em parte, sob influências do Renascimento Negro de Harlem.

Tenho testado essa hipótese. No ano passado publiquei o artigo “José Craveirinha e Renascimento Negro de Harlem”, na Buala, Mbenga Artes e Reflexões e no jornal Notícias que inicia a minha reflexão a volta desta questão. No supracitado artigo sigo alguns traços de semelhança em termos de ideais entre a poesia do poeta da Mafalala com o movimento norte-americano.

José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem

Enquanto lia o livro “A Alegria é uma coisa rara” (2014) de António Sopa, me pareceu conectar-se a origem da Marrabenta cujo historial é contado por, entre outros, Rui Laranjeira no livro “A Marrabenta: sua evolução e estilização 1950-2002” com a circulação do Jazz em Maputo, então Lourenço Marques. No capítulo em que Sopa se dedica ao Jazz, invariavelmente as primeiras bandas urbanas – é certo que em muitos casos dos subúrbios – de Marrabenta tinham tocado Jazz.

E o Jazz foi uma das armas de combate dos negros norte-americanos, do Harlem ao longo do século XX. Nina Simone, é apenas um dos vários exemplos. E na vizinha África do Sul, Hugh Masekela, Miriam Makeba, Dollar Brand, Caifás Semenya, Letta Mbulu, Jonas Gwangwa, são outros nomes que usaram este este género musical contra o Apartheid. O Jazz entrou no país pela Casa Grande, desde logo consumido por uma elite intelectual, entre os quais Ricardo Rangel e José Craveirinha que o levaram a periferia. Mas não só eles. E através desta música fez-se a Revolução, reconhecemo-nos como Sujeitos e acreditamos na hipótese de criar a nossa própria forma de Ser. A Marrabenta, é certo, não tem no Jazz a única e exclusiva causa.

Este não é um trabalho científico e nem de comparação. Trago aqui algumas evidências, insinuações, nuances. O artigo está dividido em dois momentos, o primeiro, da entrada do Jazz e o segundo, da criação da Marrabenta.

O Hotel Polana abre as portas

Até 1927, não há relatos de músicos de jazz da actual Maputo, embora já tivesse passado o Harlem Swimming. O jornal Lourenço Marques Guardian anuncia em Fevereiro do mesmo ano que no dia 1 de Março, uma orquestra de Jazz irá apresentar-se no Hotel Polana.

“Haverá cinco instrumentos incluindo um saxofone, sendo os artistas especializados em matéria de Jazz”, lê-se numa citação do historiador António Sopa, no livro “A Alegria é uma coisa rara subsídios para a história da música popular moçambicano urbana em Lourenço Marques 1920-1975)”, do jornal que saia três vezes por semana.

O género foi tomando a cidade, de tal modo que no dia 10 de Novembro de 1927, o Lourenço Marques Guardian noticia Jazz Luso, cogita Sopa, constituído por indo-portugueses. Anos mais tarde, em Março de 1939 o Rádio Clube passa a ter uma orquestra que toca no seu auditório e noutros espaços da cidade.

“Temos ainda referência a um outro agrupamento – a Orquestra Luso-Africana -, provavelmente constituído por músicos indo-portugueses, sob direcção de Caetano Gomes, em Maio de 1945”, regista Sopa, tendo como referência um exemplar do matutino Notícias, de 9 de Maio de 1945.

Da vizinha África do Sul, que já desde a década 20 do século passado vinha mantendo contacto com o Jazz – e hoje o jazz sul-africano tem o seu lugar ao sol no mundo -, vão chegando a Maputo músicos e bandas que animam aos músicos locais. Dessa época José Craveirinha destaca a vinda de Harlem Swinguists. Sopa não ignora o sexteto African Jazz Review que actuou no Estádio do Malhangalene, em Junho de 57. Numa notícia de 22 de Junho do mesmo ano, sobre o último conjunto, Josuino Cravo escreveu, no jornal O Brado Africano, que “no seu repertório tinham (…) músicas, danças de sabor genuinamente jazzístico (…)” além do folclore executados com instrumentos europeus: piano, saxofone e trompete. E refere-se ao facto de que parte destes músicos estarem associados aos movimentos anti-Apartheid, o que explica o exílio de vários músicos da África do Sul.

Marcante, afirma Sopa, foi a vinda de Chris Schilder (pianista), Wiston Mankuku Ngozi (sax tenor), Garry Kriel (guitarrista), Philip Schilder (contrabaixo) e Gilbert Mathews (bateria), que compunham o Chris Schilder 5, considerado na época um dos mais importantes projectos de Jazz no continente. A convite de Ricardo Rangel, na mesma viagem veio igualmente o grupo Malombo Jazz Makers – Julien Bahula (tambores tradicionais), Lucky Ranko (guitarra), Abbey Cindi (flauta, sax soprano e compositor da maioria dos temas) e Abigail Kubeka (voz) -, conjunto que ia na linha do jazz-soul numa fusão de ritmos africanos e jazz – como se pode observar em projectos como Malombo Jazz Makers, vol. 2 (1971) ou Malombo Jazz (1972), disponíveis em plataformas de streaming.

Ambos grupos se apresentaram no Cinema Dicca (depois Cinema Matchedje / Cine-Teatro Gilberto Mendes) no dia 13 de Dezembro de 1969. E conforme o jornal A Tribuna de 15 do mesmo mês, o domínio técnico e execução sublime de Chris Schilder 5, entretanto em trio – piano, contrabaixo e bateria – não vibrou a audiência como os Malombo Jazz Makers o fizeram. “Este conjunto atingiu notas muito altas de emoção da assistência com interpretações de música acentuadamente africana”, descreve a publicação. Os dois ainda se apresentaram na Associação Académica de Moçambique e no Auditório da actual Rádio Moçambique.

António Sopa ainda refere o 1 Festival de Jazz de Lourenço Marques, em 1973, como outra ocasião em que importantes bandas sul-africanas actuaram na actual Maputo. Trata-se de The Jazz Revellers, The Jazz Clan e o quarteto Coronets.

Terá impulsionado a vinda de músicos sul-africanos ao país, o facto de o empresário Alfred Herbert que descobriu Miriam Makeba, Danny Williams, Penny Whistle, Dorothy Musuka, ter se interessado em divulgar artistas negros cá. Foi pelas suas mãos que em Março de 63, Mona Miller, Tandi Khumala e Gregory Gallan, integrantes do conjunto African Follies, realizou uma jam session no restaurante Ponta do Mar.

Moçambicanos incluem Jazz no seu repertório

O escritor e jornalista Calane da Silva, numa entrevista gravada em 2012, conta ter memória de Firmino dos Santos, Jaime da Cruz (Patchera) e, provavelmente, Daíco, a ensaiarem Jazz aos sábados à tarde, no seu quintal no periférico bairro da Malanga, entre 1954 e 1958.

Para Sopa é nítido, entretanto, que a entrada em cena dos agrupamentos João Domingos, Djambo e Harmonia, no início dos anos 60 introduz executantes negros e mestiços na cena moçambicana do Jazz.

Já nessa altura, o maior entusiasta do ritmo de que temos memória, o fotojornalista Ricardo Rangel estava tomando pelo ritmo, aliás, desde o período da Segunda Grande Guerra que obteve as raras colecções V-discs, discos da victória, edições especiais distribuídas pelos batalhões norte-americanos para os animar nos palcos dos teatros da II Guerra Mundial. Rangel, que nessa altura frequentava a zona baixa da cidade, à volta do Porto, teve o privilégio de receber algumas cópias que constituem uma relíquia para qualquer colecionador do género. Em entrevista ao jornal A Tribuna, publicada no dia 28 de Junho de 1963, Rangel, responde a pergunta “Acha que Lourenço Marques se interessa por jazz?”, dizendo: “Com certeza. Se não vejo o que tem acontecido sempre que há chance para uma sessão jazzística: a juventude e até os adultos acorrem em massa”.

Em finais de 1962, entretanto, depois de uma sessão do conjunto local Renato Silva, no restaurante Zambi, o organizador dizia ao A Tribuna que não via assim tanto entusiasmo para o Jazz em Maputo. Sessão essa que, conforme Sopa, teve uma aderência massiva de músicos moçambicanos, como o baterista Alexandre Goveris, o sax alto Luís Chess, guitarra elétrico João Domingos, o trompetista Hassane, os saxofonistas tenor Gonzaga e Rachid, além do Tiago (trombone) entre outros como o Freddie Platz (piano) que tocava na boîte do Hotel Girassol, John Miller, de férias na cidade, e Aubrey (contrabaixo).

António Sopa considera essa sessão particularmente importante pelo facto de a partir dela ter-se tentado organizar outras com regularidade no restaurante Zambi e no Hotel Girassol com presença de músicos moçambicanos dos conjuntos João Domingos e Djambu e músicos estrangeiros impulsionados também pelo entusiasta Augusto Pereira.

Publicaremos a segunda parte na próxima semana…

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