Mapiko update

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É um dado adquirido que as independências africanas, conquistadas entre as décadas 50 e 70 do século passado, sendo, no caso de Moçambique, em 1975, foram meramente políticas. Faltou a libertação do pensamento, da cultura, que é um projecto ainda mais duro e longo, se tivermos consciência de tratar-se da destruição e posterior edificação de estruturas discursivas e narrativas que, durante séculos, alimentaram – e foram patrocinadas – por ideologias que tinham (e têm) a intenção de subalternizar o Homem Negro.

Na expectativa de fundar-se uma nação homogénea, o nosso país combateu a tribo, instituiu o português como língua única no momento imediato ao eterno 25 de Junho, no Estádio da Machava. O projecto, entretanto, ignorou – com razões que os historiadores poderão esclarecer – a diversidade que nos compõe e, evidentemente, na verdade, nos define enquanto moçambicanos.

A música como, por exemplo, ilustra o ensaísta Cremildo Bahule, no livro “Kudumba – uma plataforma de preservação da língua”, resistiu a imposição do uso exclusivo da língua portuguesa nas suas composições. Entre outros, as bandas Ghorwane e Eyuphuro, nesse contexto de proibição, cantaram nos idiomas nacionais, mostrando inclusive ao poder instituído, que não podíamos fugir das nossas raízes. Aliás, a música, nessa perspectiva, levou-nos de volta as origens. E impôs-se, talvez, porque os seus executores estavam conscientes de expressarem com propriedade e maiores possibilidades de alcançar o “ntsutsu” do Ser moçambicano.

É neste quadro que encontro o álbum “Likumbi” de Nandele Maguni, lançado e disponibilizado nas plataformas de streaming no ano passado – o autor tem a intenção de lança-lo em vinil. O título designa um ritual direccionado a adolescentes cujo propósito é ensinar o modus vivendi da tribo Makonde.

“É uma experiência, em certa medida, traumática, [em que] metem-te no mato a correr”, disse o beat maker – que morou no Zimbabwe, em Manica e Maputo, sempre no meio urbano -, em entrevista publicada no portal Rimas e Batidas.  

Para a materialização deste trabalho, Nandele parte de uma perspectiva que dialoga com o boom bap, o psicodélico e o electrónico para encontrar o Mapiko, uma dança tradicional simbólica para os Makondes, etnia de Cabo Delgado, de que descende o músico.

Com um background rico em termos de conhecimentos musicais, o antigo baterista de rock optou por trilhar um percurso pelo experimental – num horizonte de influências em que figuras como, por exemplo, J Dilla e Flying Lotus, são referências -, a explorar sonoridades antes omissas no nosso vocabulário sonoro.

Em “Sombras”, por exemplo, é evidente o batuque do Mapiko e as marcas percursivas continuam em “Fo20” ou ainda na faixa “Horácio Macuacua”, na qual, talvez, as marcas da manifestação sociocultural retrabalhada, seja mais evidente.

À semelhança do icônico Batinho, na cidade de Inhambane, que revestiu o Zoré com ingredientes sonoros urbanos, Maguni, com mais sofisticação, o faz com o Mapiko. E nisto cruza a sua história de vida, no sentido em que parte da sua origem étnica, passa pelas influências que foi tendo ao longo dos anos para desaguar num novo Mapiko, numa nova identidade, pensada por quem cresceu com dispositivos como televisão, videojogos, entre outros, sem nunca esquecer-se da cabana onde o pai começou a vida.

“Este é um álbum muito pessoal, é uma resposta para as minhas inquietações”, esclareceu na Nandele na entrevista ao “Rimas e Batidas”. É uma resposta que amplia a percepção de tratar-se de um millenial a reivindicar o seu lugar no mundo e que, igualmente, sustenta a tese de que a arte está para suprir carências pessoais, espirituais do artista.

Quando a identidade é um lugar escuro, sombrio, incerto, a medir pesos com as emoções e algoritmos; e o artista entende “a música é a interpretação humana dos sons do ambiente” …então o resultado é, como ele mesmo disse, “zonas obscuras”.

Não é absurdo considerar que, desta forma, Maguni contribui para essa busca por nós mesmos, pela independência de ser-se culturalmente, de pensar a partir das raízes dos nossos antepassados…essa libertação das mentes.

Refira-se que entre várias colaborações, a discografia de Nandele é composta por “Argolas deliciosas”, e actualmente integra, The Mute Band, Cantinho das Cores, Cortadores de Lenha.

Performance que parte do Likumbi

The Mute Band

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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