Era um dia pálido, como hoje. Semanas antes tinha publicado alguma pretensa crítica literária. Já vinha no exercício sem feedback. Uma chamada faz-me deixar a Redacção do Notícias, percorrer o corredor, as escadas para encontrar um conhecido distante.
Livros na mão direita. O cabelo propositadamente desfeito, cachimbo, óculos no rosto. A baixa da cidade fervilha no frenesim da pressa do capital. Tenho visto o que tens escrito e aprecio, mas faltam-te algumas leituras. Vens a minha casa e te empresto os livros. Perdemo-nos na conversa na esquina entre a Joaquim Lapa e a Rua da Imprensa, por mais de uma hora.
Dionísio que é, já em sua casa, dias depois, para levar os livros, vinho e whisky a rodos. Sartre, Eagleton, Backtin, Ranciére, Ion de Platão – e aqui, por exemplo, a desmistificação de que o fundamento para a expulsão dos artista da Polis é anterior á República -, entre algumas dessas novas leituras.
Com os anos, tivemos conversas sobre sonhos, no seu leve trato. Nesta humanidade dos poetas. “Fotojornalismo [ou] a gramática das sensações”, seu primeiro livro é filosofia com poesia, com imagens reais nesta reflexão delas não apenas como fotografia. Numa linha não distante de Foucault sobre a compreensão de que tudo está envolto á linguagem que é discurso, narrativa. Nesta linha o imaginário individual e colectivo desenrola-se em torno dessa dicotomia. E Bahule parece querer trazer a compreensão da imagem para este plano.
Jornalismo cultural, crítica de arte, filosofia, artistas plásticos, escritores e o exercício da escrita a animar as sentadas no seu fresco jardim ao som de Carlos Gove, Jaco Maria, Milton Nascimento, Marcos Miler. Recuperar memórias de Umberto Eco, percorrer Achille Mbembe, retornar a Adorno. Duas Caras, Azagaia, Kloro, noutras ocasiões.
Goles de Ballantine’s. Vencido pela Jameson. Vinho. Poesia, Charles Baudelaire, Álvaro Taruma, outro artigo do Cabrita no Savana, o professor Ngoenha começa a publicar nos jornais de forma regular. A poesia da Hirondina, alguns contos do Voo de fantasma de Mélio Tinga. Algum saudosismo que projecta o resgate do Mondlane intelectual e todo o seu pensamento.
Os poemas à Alice, sua irmã. À Teresa, sua parceira. Esta ânsia permanente de buscar capturar os pequenos nadas da existência nas pequenas e infinitas particulas do verso. Conversas e leituras. A técnica de deseenho, de colagem, de recorte, o traço singular de Ventura Mulalene posto na sala.
No correr da luta teve (tem) uma longa vivência com a Kota Paulina, que o faz testemunha de um icônice vivo. Estão aí as entrevistas e crónicas escritas e publicadas no Brasil, no Mbenga, Notícias, O País e por ai se segue, os vídeos, o livro “A voz do cárcere” coassinado: Paulina Chiziane e Dionísio Bahuele.
Tive então o privilégio de assinar o prefácio do seu segundo livro, “Tabuleiro SEMIÓTICO [OU] O Cálculo da RAÍZ QUADRADA”, por algum impulso, sou gémeos, aceitei o desafio. Excerto do prefácio:
“Tabuleiro SEMIÓTICO [OU] O Cálculo da RAÍZ QUADRADA” quer nos recordar, neste cruzamento entre o prosador, poeta e filósofo que a dança, a música e todas as outras artes, enquanto expressão do interior do indivíduo, que na aparência não passam de pequenos nadas, são a celebração do pensamento e do meio circundante.
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Enfim, quem já o ouviu falar ou leu, está de acordo que há um notável background de leitura na articulação e uma compreensão crítica dos factos. Não espanta, e por isso escrevo, que tenha se tornado júri do Prémio Camões.
Já temos um motivo para o próximo vinho, disse-o ao telefone, na chamada para congratula-lo. Ao próximo vinho, respondeu hoje, num dia cinzento como no primeiro.
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