Mensagem do TP50 no funeral do Chico António

A solenidade que o momento impõe não se coaduna com a personalidade de Chico António. Um homem sério cujo a atitude permanente era enfrentar tudo com humor e riso. Fica pois difícil despedir-nos de quem sabemos que vai continuar a inspirar as nossas atitudes e obras para sempre. Fica ainda mais difícil apresentar condolências quando todos nós nos sentimos de luto. Afinal o Chico, pela sua maneira de estar e ser, tornou se família de todos nós. Preferimos então repetir o que dissemos sobre o Chico António quando, em 2021, fizemos “A Alma da Música: um tributo a Chico António” no qual muitos presentes aqui na sala participaram.

“Aos seis anos de idade Chico António fugiu de casa, de Magude para Maputo. Nessa fuga perdeu a infância, mas fez do mundo uma casa. Essa migração de corpo e alma aconteceu literalmente: o pequeno Chico passou a viver na rua. Foi criança de rua durante dois anos. A rua não é lugar para crianças. E Chico António inventou, dentro da rua, um lugar onde fosse criança. Até que foi preso pela polícia de segurança pública do regime colonial. Prenderam-lhe o corpo. Não lhe aprisionaram a alma: nas ruas onde viveu, Chico António aprendeu a criar as suas próprias regras. Para sobreviver ao relento da cidade e à dureza da prisão, é preciso impor as suas leis à vida. Foram essas outras regras que usou, mais tarde, para criar o seu universo musical. Este menino de oito anos, passou meses na cadeia rodeado de gente adulta. Viveu na carne e na alma a desumanidade da prisão. Pela segunda vez, ele teve que virar costas à infância. Ou talvez tenha, pela segunda vez, inventado uma outra maneira de ser criança. Foi adoptado pela Sra Leonila dos Santos e seu marido José Ferreira do Santos, pais da Dra Teresa Schwalback e avós do Joni, nosso querido Joni Schwalbach. Mais tarde, foi entregue aos cuidados da Missão de São José onde cresceu até ir para o Khovo Lar. Nem sempre os lares podem oferecer à criança desamparada aquilo que só se pode encontrar na sua própria família.

Mais uma vez, o jovem Chico teve que inventar um mundo onde ele descobrisse a sua própria alma migratória. A música tornou-se um modo de ele contar as duras, mas férteis vivências da sua atribulada infância e adolescência. Esse tempo deu-lhe muitas almas. A essas almas vai buscar inspiração. Sem qualquer condescendência com modas, sem qualquer compromisso comercial nem facilidade para agradar. Os temas musicais permanecem dentro dele, numa longa gestação. Ao contrário do que lhe aconteceu a ele, as suas composições têm longas infâncias. Mesmo nos momentos de mais dificuldade, o músico não cede. A sua obra tem essa verdade: são a casa que lhe faltou enquanto criança. As letras chegam depois. As palavras são convocadas pela música. Como se fossem tradutoras de uma primeira e mais antiga linguagem. E hoje a casa de Chico António alberga todos os que lá quiserem morar. O espaço doméstico que devia ser privado é transformado num espaço comunitário. Essa generosidade sem fronteira custou a Chico alguns dissabores. Mas a música não prescinde desse partilhar das suas paredes. Como se estivesse reparando o tempo em que sobreviveu na rua ou num lar para crianças. No peito do Chico António batem mil tambores. E nós cantamos e dançamos nessa sua casa que não tem fronteira. A música é o compasso da vida. E ele, Chico António, recebe-nos à porta dessa sua casa para nos convidar a entrar na alma da música.”

Chico

Embora sejas imprescindível e insubstituível nós temos agora de pegar a tua música, as tuas palavras e sobretudo o teu exemplo de artista e ser humano que nunca se desviou a troco de nada que não fosse tua generosidade e humanismo elevado ao extremo.

SARAVAH CHICO

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