“Henry Sugar”: a genialidade da adaptação cinematográfica

Oppenheimer é o melhor filme do ano, lia-se da crítica generalizada à especializada, um pouco pela media de todo o mundo. Houve quem classificara como a película do século. Eu embarquei na primeira corrente.
É, sem dúvidas, uma das melhores criações do cinema contemporâneo não apenas no subgênero “filme de personagem”. O minimalismo da mise-en-scène que permitiu explorar a fundo o protagonista que bem foi executado por Cillian Murphy foi uma das jóias da “longa” que conseguiu um sucesso comum para blockbusters.
Não foi de todo surpreendente que fosse dirigido por Christopher Nolan, habitualmente, talhado para clássicos. Quando em Julho de 2018 estreou “The Dark Knight Rises”, o seu tom, temas maduros, estilo visual, performances dos actores, em particular do Coringa (Heath Andrew Ledger) e a opção por uma toada policial também levou-nos a acreditar que estava tudo feito. Não por acaso foi o primeiro filme de quadrinhos a receber grandes prémios da indústria.
O “presente grego”, entretanto, para quem, como eu, acreditou que o monumento Oppenheimer era tudo que havia para acontecer este ano, chegou com “The Wonderful Story Henry Sugar”, dirigido pelo norte-americano Wes Anderson. A proposta é composta por quatro curtas-metragens adaptadas de contos do britânico Roald Dahl (1916 – 1990), escritor de literatura infantil e não só, para além de ter dirigido algumas “curtas”. Está na carteira da Netflix e teve a estreia a 30 do mês passado.
Levar a literatura para o cinema me parece um caminho estreito. Claro, de propósito se designam adaptações, pela impossibilidade de transposição directa. Há alguns filmes que roçam a fidelidade do argumentista para com o escritor.
A “curta” Nhinguitimo, de Licínio Azevedo, que parte do conto homónimo de Luís Bernardo Honwana, é um desses casos acertivos. Casos maus igualmente os há. Mas há que se assumir que é tudo a experimentar, o mundo ainda não acabou de ser inventado.
Este exercício de estabelecer diálogos entre diferentes disciplinas é como a obra de bico de responder a pergunta, em termos de linguagem, que o gelo tem a dizer sobre o fogo? A concordar com Foucault, figura (em movimento, neste caso) e palavra (literatura), embora produzam e projectem imagens, o fazem em direcções difetentes. Done!
Em 2009, Anderson se iniciou nas adaptações de Dahl com a aprovação quase unânime da crítica. Foi com o filme em stop-motion “Fantastic Mr. Fox”. E agora, quase a contar quinze setembros, volta com este pacote composto por “The Wonderful Story of Henry Sugar”, “Poison”, “The Swan” e “The Rat Catcher”. A dúvida generalizada é se podemos designar este projecto de tetradrilogia? Tanto faz a resposta.

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“The Wonderful Story of Henry Sugar”

Indo aos filmes. O primeiro já esclarece que se está diante de um director disposto a arriscar os limites do cinema em busca de uma forma autêntica de o executar, usufrui-lo, ao incluir nele elementos inesperados como, por exemplo, o artifício teatral na linha épica brechtiana.
Nessa “curta” inaugural, de aproximadamente 40 minutos, vemos Henry Sugar (Benedict Cumberbatch), um herdeiro londrino, mestre do trick, que transforma a sua vida na leitura de um livro manuscrito em que a habilidade de Imhrat Khan, um ilusionista indiano, vê de olhos fechados. Este aplica-se a técnica até desenvolvê-la a ponto de aplicar nos jogos de cartas e fazer balúrdios de dinheiro diariamente.
A Índia traz nas entrelinhas a questão colonial e como o contacto ocidental (britânico no caso) com os colonizados foi fonte de aprendizado mútuo, o que a narrativa que sustenta esse momento histórico – tão ou mais escuro que a idade média – propositadamente ignora. O que pode passar despercebido pela inexistência do “agora” no enredo – o Cronotopo de Bakhtin fica ao lado. Até porque a narrativa, a partida, não retrata nada real.
Já neste, Benedict Cumberbatch narra a história intercalado por Ralph Fiennes que interpreta Roald Dahl, sentado na sua cabana que deu o nome de Gipsy House, onde escrevia, revelando os seus gestos, acções em frente a camâra, como se estivesse de facto a falar para ela, deixando de lado a clássica ideia de se fingir que o dispositivo não está ali e que o que se vê na tela é a própria vida. É ao estilo de um repórter a fazer um directo.

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“Poison”

Chegamos ao segundo já conscientes de que a expeiência que nos vem da tela é algo próximo a um áudiolivro, entretanto, com imagem em movimento. Bem como com a simplicidade complexa como Robert Yeoman filma. Porém, o tom se difere do anterior, diria tratar-se de um suspense ala Alfred Hitchcock.
Pense num homem deitado na cama, coberto por um lençol e com um livro aberto repousado no peito. Esse homem (Benedict Cumberbatch) apenas se comunica com o soldado indiano (Dev Patel) através de expressões faciais e se esforça para, enquanto fala, não mover além da boca e dos olhos. E a razão, qual seria? Perguntaria o soldado preocupado com o aparente patrão: uma krait que decidiu se deitar na sua barriga. É!
Então, um médio (Ben Kingsley) às pressas é chamado para evitar que a fatalidade aconteça. Coberto de suor, Cumberbatch empresta uma performance brilhante para trasmitir as suas emoções e pelo desenrolar dos acontecimentos, o absurdo se revela para no fim descobrirmos o fantástico de um Kafka. E se, como referem os críticos e jornalistas familiarizados com Roald Dahl, Wes Anderson lhe está a ser fiel, o britânico é um grande escritor.
O mais intenso dos quatro é este “Poison” cujo enredo ainda nos pode remeter ao debate sobre a loucura do Foucault, de tão insano e absurdo que se revela a trama toda no seu desfecho, considerando a promessa da premissa.

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“The Swan”


Em todos eles, os cortes, o particular uso singular do high-angle shot, os cenários milimetricamente calculados, os enquadramentos elaborados ao tutano e uma paleta de cores singular agregam à tetralogia uma experiência e um carácter de sonho e transformação, envolvendo o espectador numa viagem de várias e inesperadas paragens.
Três rapazes de 15 anos. Um deles ganha, de aniversário, uma espingarda. Convida outro para caçar pássaros. Peter Watson, o terceiro deles, adora pássaros, é o mais franzino e delicado. Está desarmado a tentar impedir que aquela caça aconteça e vira ele próprio o alvo.
Ralph Fiennes, que interpreta o Peter já adulto, a recordar esse episódio traumático da adolescência que mostra que a crueldade pode ter que ver mais com o cáracter do que com as experiências vividas, desempenha um papel sublime.
Talvez aqui se encontra uma das metáforas mais bonitas deste projecto. O defensor dos pássaros, objecto permanente na poesia – esse símbolo de liberdade – acaba até amarrado numa linha férrea a escapa à morte após a passagem do comboio em defesa da liberdade. É lindo.


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A opção pela narração dos factos pelo personagem aqui até remete a alguns excertos do espectáculo de teatro “Chovem amores na rua de Matador”, co-encenada por Maria Clotilde e Vítor Oliveira como um produto da Fundação Fernando Leite Couto e cujo texto original é co-assinado por Mia Couto e Eduardo Agualusa. Os personagens fazem o mesmo, cada um contando a sua versão dos factos.
Há que ressalvar que a narração, que a muitos pode incomodar, nestes trabalhos é executada de forma precisa, não parecendo uma muleta. É feita com tal mestria que só conhecíamos algo próximo executado por um Martin Scorsese ou Jorge Furtado, por exemplo. E com resultados impressionantes.
Enfim. Ainda sobra “The Rat Catcher”, que deixo ao seu critério. Nisto tudo ainda se mistura a técnica do documentário. Em definitivo, as adaptações nunca mais serão as mesmas. E as “curtas” estão em alta. Deste ano ainda sugiro “Asteroid City”.

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