Aí deles se chorarem…

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Estávamos à sombra da mangueira. Uns hipnotizados num nada e outros com cabeças erguidas a olhar para o céu, como se esperassem receber uma resposta do supremo. Tristes canções de dor e perda foram capazem de nos deixaram tão sensíveis e numa profunda relação oa sobre destinos e as complexidades da vida.

Havia uma multidão espalhada em todos os cantos daquele quintal, sem se importar com onde punham a bunda a descansar – na cadeira, banco, esteira, nos blocos e até no capim, que ali floresce tão bem.

Ainda com diferenças, fofocas de mentiras, sobre tudo e todos, que agendam as conversas de desocupados deste quarteirão, em situações de infelicidades, camuflamo-nos de bonzinhos e seguimos para dar à mão. Hoje não foi diferente.

Encerradas as canções e orações, o régulo do bairro, quem dirigia a cerimónia, pediu um ofertório para apoio da família que de família só tem o nome.

Numa peneira apoiada num dos bancos, vizinhos iam depositando suas moedas, de dois a cinco meticais. Não me lembro de ter visto, sequer um dez meticais ou, ao menos, uma nota. Mas estas coisas são como presentes de aniversários que, como diz a regra padronizada socialmente, “não se escolhem”. Ao fundo ouvi uma voz feminina, aos cochichos, preocupada: “irmã, tens trocos de vinte, é que não tenho moedas aqui”. Parece, também, ser regra que, nestas ocasiões, não se pode oferecer dinheiro em notas.

São as mesmas pessoas que em suas igrejas, essas emergentes na capital, não deixam escapar um dízimo nas mãos de seus pastores. Sacrificam avultados bens materiais e nem se sentem a perder. É o que sempre digo: estamos todos cegos em nós mesmos e, por nós, somos capazes até de morrer para viver bem.

Quem nos reuniu, na tarde de hoje, naquela casa que só cheira a destruição, sofrimento e tristeza, é a Rabia que já não está entre nós.

Tão doce e delicada. De pele castanha e cabelos pretos cumpridos e africanos, semelhante ao das mulheres portuguesas pelo tamanho, o que fazia com que qualquer um que a visse, questionasse sobre a sua origem.

A vida foi dura com Rabia. Outros, ainda, dizem que é muito sobre o parceiro que escolheu passar o resto de sua vida. Há quem não consegue cumprir promessas, mesmo as que são feitas no altar, diante do supremo e do testumunho de homens e mulheres.

Fábio, seu esposo, quebrou o juramento quando decidiu construir família com outra esposa. Rabia foi pega, de surpresa, em 2016, pela paralisia, devido a depressão de ver sua família aos pedaço. Seu quadro clínico nunca mais melhorou e hoje fomos informados da sua infeliz partida.

Tiveram três filhos, o mais velho que mal se importou e cuidou dela, apesar de estarem a dividir o quintal, já que este levantou sua dependência ao lado da casa principal. O segundo se juntou ao pai na nova família. A caçula, de vinte e dois anos, que vai de bar em bar, de balada em balada, como se estivesse a procura de felicidade.

Uma vez ao mês, como gesto de solidariedade, dávamos-lhe banho, oferecíamos comida e limpávamos o quatro em que vivia trancada. Nunca coube nas nossas mentes que três filhos adultos seriam capazes de assistir a morte da mulher que os gerou, sem mover, sequer, um dedo.

“O enterro é amanhã”, informou-nos a caçula, antes que começássemos a nos dispersar. E ainda ouve-se entre os presentes “aí deles se tirarem uma lágrima amanhã”.

Pois é. Foi à própria sorte que se foi a pobre mulher. Aí deles se chorarem…

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Isah Esmeralda, pseudónimo de Felizarda Nhare, formou-se em locução pela Rádio Cidade das Acácias, tendo apresentado o programa “Rotatividade”. Colaborou na União Nacional de Estudantes, como Directora Adjunta do Departamento de Comunicação e Imagem. Querendo mergulhar no Jornalismo Cultural, de 2022 até inícios de 2023, foi repórter na Plataforma Mbenga: Artes e Reflexões, onde conduziu entrevistas e assinou textos em diversos géneros jornalísticos, para a promoção das artes e cultura em Moçambique. Conta com textos sobre cultura na Plataforma "Tsevele". É estudante de Jornalismo pela Universidade Eduardo Mondlane. E, também, dedica-se a escrita de contos e crónicas literárias de intervenção social, tendo se destacado entre os 10 finalistas da 1ª edição do Prémio Carlos Morgado. Além disso, ocupou o 1° lugar no Concurso Tio Caderno - Literatura 2023.

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