Caos*

Saramago escreveu: “o caos é uma ordem por decifrar”. Sei lá, deve ser. Na verdade, talvez eu devesse parar de ler os argumentos destes velhos amargurados para justificar minha incapacidade de viver em sociedade.

Gosto cada vez menos das pessoas, isso incomoda-me. A cerveja das sextas-feiras lá na esquina começa a provocar-me náuseas, que pioram com a mediocridade das conversas que tabelam entre mulheres e futebol.

É um vazio de espírito dilacerante sempre que me vejo naquele círculo, num esforço titânico, com um copo na mão, mantendo um sorriso falso no meio de amizades forçadas que insisto em cultivar.  

Conheço este sentimento, lembra-me a minha infância, miserável, solitária e cheia de perguntas. Qual é o verdadeiro propósito de tudo isto e porquê que realmente existimos?    

A Filosofia tem dezenas de hipóteses para estas perguntas, mas nenhuma me satisfaz. Nos últimos anos, consultei, por prazer ou obrigação, cadernos, notas e livros que marcaram a antiguidade clássica, a época medieval, a modernidade e a pós-modernidade, mas não encontrei respostas para pergunta.

Os anos passam-se e a falta de respostas plausíveis para estas perguntas faz com que tudo pareça sem sentido.  Parece-me inútil preocupar-me com o que quer que seja, dinheiro, o sucesso ou, até mesmo, a carreira.

Tudo é resultado de uma mera coincidência e nós somos, na verdade, um composto de partículas indivisíveis que deambulam pela terra, num ciclo infinito de adaptação constante a um meio ambiente que não controlamos, embora, na soberba, pensemos que podemos salvar o mundo.

Talvez devesse mesmo entregar-me a Cristo, como tantos me têm sugerido. Talvez estas vozes que me tomam na madrugada se calassem definitivamente. Se calhar, abdicar da parte racional que torna impossível o meu processo de socialização seja o melhor. Talvez a solução seja mesmo parar de questionar e aceitar.

Enquanto penso na ideia de Deus, eu estou nu, na sala, com o computador aberto. Num exercício inútil, busco palavras e vocabulários novos para expressar sentimentos velhos.

Parece-me irónico e masoquista, mas o cenário me atrai, por entre a fumaça de mais um tabaco e o som repentino das sirenes das ambulâncias que rasgam o silêncio da madrugada na cidade de Maputo.

Fui à janela, sem motivo algum. Vi um homem de postura pálida atravessar a rua, parece-me um homem sem destino e de poucas causas. Mas voltei-me a mim e me questionei: quem sou eu e quais são as minhas causas?

Olhei novamente para homem, já quase engolido pela escuridão, e, surpreendentemente, percebi que aquele andar me era familiar. Sou eu, indaguei-me. Não, as minhas alucinações começam sempre da mesma forma.

Voltei ao quarto para procurar por mais um cigarro, mas o maço está vazio. Sentei-me na cama com aparente exaustão e voltei a pensar na ideia de Deus, sempre de tronco nu. Um ataque de ansiedade me toma e a memória leva-me novamente a minha pobre infância nos becos de Hulene.

Quase sempre descalços e pálidos, lembrei-me de amigos com os quais “tomei” os becos de Hulene durante a adolescência. Hoje, alguns, tentam resistir ao flagelo da vida adulta ganhando dinheiro como podem (legal ou ilegalmente). Outros, com menos sorte, estão detidos, como foi o caso do Sapinho ou do Mussa, dois dos mais temidos líderes das “gangs” adolescentes que dominaram o meu bairro em finais da década de 1990. 

O comum entre o Sapinho e o Mussa é que servem sempre de “maus exemplos” no discurso da minha mãe, que insiste que esteve sempre certa ao obrigar-me a permanecer na escola, muitas vezes com recurso a força excessiva e desproporcional. 

Não tenho coragem para confessar-lhe hoje uma verdade: sinto-me mais preso que qualquer amigo meu que está na prisão agora.  Embora as paredes não sejam físicas, sinto-me cada vez mais preso a um sistema que me tem pelas bolas. E, por este motivo, os meus delírios cognitivos nesta madrugada terminam aqui. Amanhã, antes mesmo que o sol apareça, tenho de levantar-me para uma vez mais, fazer as mesmas coisas que fiz hoje na torturante luta pelo próximo salário.  Que inveja tenho hoje do Sapinho e do Mussa.

*Publicado no semanário Evidências

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