Os vizinhos já não são família…

Ensardinhada, no TPM Nkobe-Baixa, tudo o que me agrada é abrir a voz e gritar ”paragem Baião”.
Deste ponto, baptizado pela má fama, sigo pela rua do cemitério Bedene. Num dia coberto de correrias e lutas com cobradores-jornalistas são só glórias chegar à casa, aliás ao dormitório, já que vivemos todos na Baixa.

Hoje não há auriculares fixados aos ouvidos. Não tem como fazer-me surda diante das saudações dos vizinhos que buscam, a todo custo, entender as quantas anda a minha vida.

Maldita hora que esqueci os meus auriculares sem fio, na mesa do escritório. Adele, no último volume, em “Love In The Dark”, safava-me de tanto.
Lembro que é inverno e a esta hora não há grupinhos debaixo da sombra das mangueiras a controlar quem sai e entra pela rua. Isto já me alivia e permite-me viajar em minha própria mente, sem interrupções.

Não viro, mas sinto a presença de alguém por trás de mim. Os meus batimentos cardíacos aceleram. Apresso os meus passos, a fim de encontrar o ponto de luz visível.
Não há mais ninguém a vista, apesar de serem dezoito horas e poucos minutos.
No inverno as pessoas se recolhem cedo, pelo menos as da rua do cemitério Bedene. Devem dar ouvido aos mitos sobre os mortos, mas não é verdade que saem por aí andando quando a lua dá às caras.

Antes que alcance o ponto de luz, passa para o meu lado direito quem seguia os meus movimentos. Olho para o rosto e noto que é o vizinho que mora ao lado da minha casa. Relaxo e alegro-me por ter uma companhia.

Começo a desconfiar do rumo da conversa, quando pergunta a minha disponibilidade para um jantar a dois e longe da zona. Fico constrangida, mas mantenho-me calada porque só mais cinco passos que entro pelo portão da minha casa.

Antes que curvemos, segura-me pelo braço e sussurra no meu ouvido: “um dia vou te provar. E do jeito que és peluda, deves ser gostosa”.
Não grito. Não faço nenhuma reação física.

Desaperta o meu braço e, então, fico aliviada por, no mínimo, ter me deixado entrar em casa.

Não foi desta e só rogo que não seja da próxima vez. Fico feliz por não ter se aproveitado do vazio da rua do cemitério para fazer das suas com o meu corpo.

É o tio Muzinho. Cresci com sua filha, brincando, no seu quintal, de esconde-esconde, papá e mamã, neca e tantos jogos tradicionais. Lembro-me até das vezes que arrancava, da sua mangueira, uma vara para educar-nos sempre que fôssemos contra as regras.
É estranho ouvir que vais provar-me, tio Muzinho, logo eu, tua filha…

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