“O escritor não deve escrever em função dos prémios” – Marcelo Panguana, Prémio de Literatura José Craveirinha 2023*

Marcelo Panguana, 72 anos, venceu o Prémio de Literatura José Craveirinha 2023, maior galardão da literatura nacional, em reconhecimento do seu empenho e dedicação, ao longo da sua vida, às artes.

É autor de “As Vozes Que Falam Verdade”, “A Balada dos Deuses”, “Chão das Coisas”, “Os ossos de Ngungunhana”, “João Kuimba, Chico Ndaenda e outros contos”, “Como um louco ao fim da tarde”, “Conversas do fim do mundo”, “O vagabundo da pátria”, entre outros.

Com uma carreira jornalística notável, colaborou com os jornais domingo e “Notícias”, com as revistas “Tempo” e  “Diálogo”. Actualmente, além de escrever os seus próprios livros, tem-se dedicado a fazer crítica literária. Afável, aceitou conversar. Fala dos problemas da educação, do bom estágio da literatura nacional e revela: “tenho medo de escrever maus livros”.

Comecemos a conversa assim: como está depois de vencer o prémio?

Com 72 anos, sinto-me fisicamente bem e emocionalmente estável, com vontade de continuar a viver para poder sonhar e escrever os livros que estão dentro da minha cabeça.

São tantos?

Os livros sempre vão surgindo de acordo com a dinâmica pessoal, com as propostas que o país, a sociedade e o próprio mundo em que vivemos nos sugerem. As ideias para os livros vão sempre fermentando, vão nascendo e fazendo crescer esta vontade de querer intervir através da escrita. Os livros vão surgindo assim, uns atrás dos outros, uns melhores que os outros, uns mais intervenientes que os outros, mas vão surgindo…

Há eventos globais, mas que nos tocam porque somos uma parte do todo. As guerras e golpes de estado estão aí. Como escritor, para onde acha que isto nos leva?

O escritor é sempre um elemento importante nesta tentativa de se pretender modificar o mundo, através do humanismo que transborda nas entrelinhas dos seus livros, as propostas que anuncia nas suas intervenções públicas reflectem essa sua preocupação por essas guerras e golpes de estado que grassam pelo mundo. Ao fim e ao cabo, o escritor comporta-se como uma espécie de pastor numa igreja apregoando a palavra de Deus, ensinando que para uma sociedade se tornar melhor temos de fazer uma espécie de revolução dentro de nós. Portanto, os nossos livros, nossos comportamentos, as nossas intervenções demonstram a preocupação que temos por essas guerras que teimam em destruir o mundo.

Fazer com que a escrita se reflicta na vida das pessoas chega a ser ilusão. As razões são várias, mas é possível continuar a sonhar com essa meta?

As sociedades transformam-se porque o Homem sonha. Como diz um ditado, “quem espera não desespera”. Não podemos desistir de pensar que podemos modificar a nossa sociedade. A história do nosso país ensina-nos isso, as dificuldades que sempre tivemos, as crises que nos assolaram desde a independência ensinaram-nos que é preciso não desistir, acreditar sempre.

E sonhar, como bem disse…

Um sonho que não fuja da realidade, baseado em coisas concretas, e isso significa que temos de reconhecer os grandes erros que cometemos e tentar modificá-los, fazer o exercício de auto-crítica, uma espécie de revolução interior e até, usando uma linguagem política, purificar as fileiras.

E como fazemos isso?

Preferia falar da literatura e do prémio. Deixemos essas abordagens complexas para os políticos. Mas sei que a política é vida, que não é fácil fugir dela. Gostaria que a nossa conversa tomasse um outro rumo.

Não como político, mas o ser humano que é…

Acredito que existe gente especializada que está a debruçar-se sobre essas abordagens complexas.

O DINHEIRO NÃO TEM IMPORTÂNCIA

Vamos ao ponto. Quando foi anunciado vencedor, disse, em tom de gozo, que ia fazer de contas que é rico. Mas agora vejo-o à minha frente e concluo que ainda não começou a viver como rico…

Essa afirmação foi feita com a intenção de divertir o público ali presente. Na verdade, nada vai mudar. Este prémio para mim vale mais pelo seu significado, como reconhecimento do trabalho que vem sendo feito há mais de 30 anos. O dinheiro nao é tudo, embora seja necessário. Satisfaz-me o reconhecimento. Nós, os escritores, gostamos de sentir que afinal de contas somos reconhecidos, que há pessoas atentas ao nosso trabalho. É verdade que o dinheiro estimula, cria estabilidade que é muito importante, porque o escritor não pode estar a criar e ao mesmo tempo a pensar que tem uma factura de água para pagar, que a geleira está vazia, que falta saldar a factura de energia. Então, o dinheiro serve para dar equilíbrio à vida. Mas o Marcelo Panguana vai continuar a ser o mesmo. Não estou a fazer projectos com o dinheiro, vou continuar a almoçar e a jantar em casa, a comer a minha cacana, o caril de amendoim, a gostar das coisas simples. Não serei frequentador dos cafés de grandes hotéis. Não pretendo me asilar em restaurantes, não estou a pensar nas grandes viagens e nem me fazer passar de novo rico, isso não tem sentido, acho que a vida não é por aí. A vida é continuarmos a ser nós próprios. A vida vai continuar e a escrita também.

Existirá ideia de como aplicar este valor?

Como disse, o dinheiro não me interessa, não tem importância absolutamente nenhuma, não penso nele, penso apenas naquilo que o prémio significa em termos de reconhecimento. Se calhar, mais tarde, eu e a Helena vamos sentar e pensar nisso. Por enquanto estamos a festejar.

É prémio carreira. O que significa para si?

Agradeço ao júri que se apercebeu que ao longo dos anos a minha escrita abarcou quase que todas as áreas de criação artística e literária. Fiz crónicas, contos, romances, ensaios, crítica literária, literatura infantil, jornalismo cultural e o júri entendeu que essa minha militância, nessas áreas todas, merecia ser agraciado por este prémio. Considero que é um prémio dado com justiça. Os prémios, mais que os livros que estão na base desse reconhecimento, valem pela atenção que despertam sobre a importância do livro e da literatura, e ainda bem que é assim, porque Moçambique é um país periférico aos grandes acontecimentos literários capazes de suscitar debates sobre as grandes questões. Um prémio literário como este tem o condão de aglutinar escritores, académicos e outros criadores e pensadores. Há o cruzamento de ideias, sai-se da apatia, reacende-se o debate sobre a actual narrativa, e isso é salutar, porque o silêncio não é bom, impede o desenvolvimento da cultura.

Disse várias vezes que não vive preso a reconhecimentos. Mas chegou o prémio que o coloca para a posteridade, algo que nunca quis…

Acho que o escritor não deve escrever em função dos prémios, senão corremos o risco de ser escritores mercenários. Há outros valores que devem guiar o escritor. Por exemplo, escrever sobre as grandes preocupações do seu tempo, escrever com qualidade, difundir a sua obra, preservar a história do seu país, escrever sobre grandes dilemas do seu povo. Os prémios, se vierem, que venham. Repare que no mundo temos exemplos de escritores que recusaram prémios. O francês Jean Paul Sartre recusou o Nobel da Literatura, o angolano Luandino Vieira declinou o Prémio Camões e ainda o vietnamita Le Duc Tho. No caso do Luandino insistiram tanto para que aceitasse o prémio, assim o fez, mas endossou todo o valor para uma instituição de caridade. Ele estava muito preocupado com os valores morais. Obviamente que não tenho a estatura moral que Luandino, não vou recusar o prémio, mas o que quero dizer é que, para alguns escritores, o dinheiro não é o mais significativo. É certo que faz falta, ajuda-nos a levar a nossa vida de forma mais sossegada, mas não podemos ficar presos ao materialismo que quase destrói a essência e pureza humana.

O escritor deve estar focado aos dilemas do seu povo, é o que diz. Tem visto os trabalhos lançados ultimamente, sente que há essa preocupação?

Sinto. Os mais novos quando escrevem estão precupados consigo e com a sociedade. Conheço obras de jovens que têm essa preocupação com o seu país, nomes como Lucílio Manjate, Aurélio Furdela, Sangari Okapi, Poeta Militar…. 

Também falou de reflectir esta realidade com qualidade. Como é que se faz esta coisa de escrever com qualidade?

Significa ter domínio do vocabulário, dominar a língua, sem isso não se pode ter a coerência necessária na narrativa. Temos de ter também a capacidade de criatividade, a escrita não pode repetir os lugares comuns, tem de ambicionar dar um salto sempre maior, abordar o inimaginável, transportar certa dose de loucura, ser diferente. Um bom escritor é aquele que tem a capacidade de trazer algo novo, ser diferente, capaz de nos surpreender todos os dias, em cada obra. É o que procuro quando faço uma recensão crítica de uma obra. Felizmente, em muitos casos, tenho encontrado esta qualidade necessária. Nós estamos a atravessar um momento bom. Penso que a nível dos PALOP, provavelmente, estamos a produzir uma das melhores literaturas. Temos bons poetas, precisamos de desenvolver um pouco mais a ficção narrativa, mas estamos num bom caminho.

HÁ UMA TENDÊNCIA DE

INCRIMINAR A JUVENTUDE

É um escritor que conhece Moçambique. Que perspectivas tem para o país?

As mesmas perspectivas que o povo tem. O escritor é Homem e vive numa sociedade. Vê coisas que não estão a correr bem e é preciso modificá-las. Mas essa modificação só pode começar quando os gestores da coisa política assumirem a necessidade de melhorar o seu desempenho. Eles precisam de fazer um exercício de auto-crítica e reconhecer que é preciso mudar determinadas formas de comportamento e de gestão política. Este é o grande passo que devemos dar. Claro que é preciso combater este grande bicho que é a corrupção, que impede tudo e retarda o desenvolvimento. Para desenvolver o país, somos todos chamados a dar o nosso contributo. Muitas vezes caímos no erro de pensar que o país só se faz com políticos. Mas quem faz girar o mundo somos nós, os cidadãos, com as nossas iniciativas individuais. Criticamos muito os políticos e esquecemos que eles saem de nós, por isso, muitas vezes, os grandes erros que cometem têm um berço, são erros que já os tinham cometido antes de assumirem responsabilidades políticas. Para modificar o nosso país, repito, cada um de nós deve mudar individualmente, tornarmo-nos mais puros, conscientes, só assim seremos capazes de produzir quadros políticos mais honestos e competentes.

Ultimamente se tem falado sobre a qualidade de ensino. Gostava que fizesse uma leitura sobre esse fenómeno.

A qualidade de ensino reflecte a qualidade dos quadros que temos. Não se pode desejar que a qualidade de ensino seja perfeita, se a pessoa que ministra na escola não tem formação suficiente para o fazer. O grande dilema são os critérios. Durante muito tempo, para fechar lacunas, começámos a admitir para o Aparelho do Estado pessoas que não tinham qualidade para determinadas funções. E começámos a fazer a admissão desses quadros em áreas bastante nevrálgicas como na Polícia, Saúde e, neste caso, a Educação. Então fomos formando ao longo do tempo um sistema em que ministrávamos coisas sem a devida qualidade. É o que se passa no Ministério da Educação. Tenho receio de abordar questões que pouco domínio. A Educação é uma área complexa. O que pretendo dizer é que devemos ficar atentos nesse sector, caso contrário vamos estagnar na formação, vamos ficar condenados a ser um país que se vai socorrer de quadros vindos do exterior para ocupar grandes responsabilidades em áreas técnicas importantes.

Quem fala de educação, certamente que fala de outros factores como ética, moral. Olhando para o que se diz da juventude, sente que esses valores são prioridades para esta camada?

Há uma tendência de nós incriminarmos a juventude, e nesse apontar de dedo para os erros das novas gerações, nós, os velhos, esquecemo-nos que somos os principais culpados desses desvios morais que os jovens têm cometido. Particularmente, tenho um respeito muito grande por esta nova geração, penso que na história de Moçambique nunca tivemos uma geração tão culta como esta, que domina as tecnologias, que tem a possibilidade de viajar pelo mundo, que fala muitas línguas, e que é, sem dúvida nenhuma, uma geração inteligente. O que se passa é que nós não fomos capazes de criar um suporte moral, sobre o qual essa geração se inspirasse, fomos capazes de cometer muitas imoralidades, não fomos um bom exemplo, não conseguimos passar o testemunho. Os mais novos aprendem dos mais velhos e o que nós fazemos pode ter muito reflexo na vida deles.

Nunca se lançou tantos livros como agora. Sente que é um grande passo para o desenvolvimento da nossa literatura?

Acreito que sim. Este é mais um reflexo de que estamos num país em que as pessoas pensam, num país que, apesar das dificuldades, acredita na mudança. Mostra que a actividade editorial está a crescer. Antes tínhamos uma editora ou duas, agora temos uma rede vasta de editoras que permite que vários escritores tenham opções de onde publicar. Neste momento, não me interessa falar da qualidade desses escritos, o que importa é que se está a publicar, a pensar, a questionar, a reflectir sobre o país.

Como avalia a indústria do livro?

O livro continua caro. As formas da sua produção continuam amarradas à questão de financiamentos. É o que faz com que a produção seja onerosa. Quero dizer que nós precisamos de mecenas que sejam capazes de subsidiar a área de produção do livro de modo que seja possível produzir a preços baixos, isso vai permitir que o livro chegue às livrarias com preço baixo. Temos um leque de editoras e as políticas estão a melhorar, assistimos a uma grande aproximação do leitor em consequência disso. As pessoas participam mais no lançamento e este instrumento que é o livro vai ocupando o seu lugar privilegiado ao lado da televisão, que é o canal que atrai as atenções. Nos tempos mais próximos o número de leitores vai aumentar, creio.

Como puxar esta maioria que está na televisão para que também possa ler?

Continuando a fazer mais livros, levar escritores a províncias, escolas, dar palestras, fazer programas de literatura, incentivar os mais novos a escrever… o resto vai acontecer naturalmente.

ESCREVER E ESCREVER…

Projectos na manga?

Continuar a escrever, tenho dois livros que vão sair este ano. Tenho outros que estão sendo escritos. A minha editora, a Lithangu, está com alguns projectos que não pretendo divulgar neste momento. Mas eu vou continuar a escrever.

Escrever sempre…

De noite e de dia. Escrevo neste espaço, pequeno, que me permite alguma solidão e silêncio necessários. Vou procurar dar qualidade aos meus escritos.

Quais são os seus medos como ser humano?

Tenho medo de dormir e não acordar. Medo das cobras, de perder amigos, de não ser compreendido, medo de escrever maus livros, medo de não poder corresponder aos pedidos de amigos com algumas dificuldades.Tenho medo do medo.

Que conselho um prémio Craveirinha pode dar à humanidade?

Que sejamos iguais, que haja uma distribuição equitativa dos recursos que a natureza dispôs ao Homem, que façamos do amor a arma principal para tornarmos o mundo cada vez melhor…!

*Publicado no Jornal Domingo

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