“Não sei que género de livro é este…”: Jessemusse Cacinda sobre “Kwashala Blues”

Escrito por Eduardo Quive

Conhecemo-nos a cerca de 15 anos. E foi pela escrita que fizemos os encontros, a sua primeira viagem para Maputo, qual caçador de sonhos, caminhando nas estradas do país desde Nampula, para um percurso que diz da sua personalidade e do lugar onde quer chegar. E para onde vai Jessemusse Cacinda? De volta ao lugar onde nasceu. A vida dá tantas voltas. Conheci Nampula a seu convite, em 2016. Era o fim do caminho, o festival que criou. Era o princípio da utopia, uma editora de livros “africanos” e veio a Ethale. Foram horas e horas de serão. Conversas que o tempo não enganaram. Já lhe havia reconhecido a incaracterística forma de fazer o jornalismo, saindo da sua voz na rádio, estórias de despertar. Hoje, entre tantas coisas, filósofo, editor e escritor. Era um caminho incontornável. As tantas estórias que a vida dá. E aí chegamos a este “Kwashala Blues” que nos confunde no género e na narrativa.

O que é a vida? perguntou Antônio Abujamra aos seus entrevistados e no final ele descobriu: a vida é um abismo, onde ele próprio caiu no final. Veio-me um pouco de tudo depois de ler “Kwashala Blues”, o livro de Jessemusse Cacinda, editado pela Ethale Publishing. E esta entrevista é a única forma que encontramos de desanuviar em meio ao frenesim dos enredos.

Sempre soube-o como escritor, repito. Faltava-lhe o livro. E o livro chegou. O que fizemos com ele? Lemos. E depois de ler? Conversamos. Porque algumas estórias levam a isso…

Vamos começar do começo do “Kwashala Blues”, a chamada que o narrador recebe sobre a morte do pai. É o começo de um romance ou apenas a viagem de um personagem?

Na verdade, é mesmo uma chamada que o narrador recebe para reavivar suas memórias. Um acontecimento trágico como a morte de um pai é uma oportunidade que um ser humano tem de questionar-se sobre tudo. Questionar-se sobre a vida, sobre as decisões que tomou, sobre os erros por si cometidos, e sobre o amor, o futuro. Quem nunca filosofou na vida, seguramente, o faz quando um entequerido seu morre.

Ao falar dessa personagem, a que recebe a chamada, não se identifica. Isto porque quase todas as estórias do livro estão na primeira pessoa. Não resisto a fazer esta pergunta, é uma autobiografia?

Veja, eu tenho dito que vivi e vivo a vida. Neste exercício também conheço pessoas que vivem. Viver a vida é em toda a sua plenitude, assumir os momentos tanto bons como ruis. E a vida é feita disso. O Kwashala Blues é um ponto de encontro, onde através da música e do rítmo, as histórias de vários moçambicanos se cruzam.

Um livro triste, este. Mas uma tristeza estranha, que dá vontade de dançar, dá vontade de sorrir com o rosto cheio de lágrimas e o peito apertado. Que angústia é essa?

A vida é uma constante angústia. Veja que em nenhum momento de nossas vidas nos sentimos satisfeitos. A vida é como a filosofia, é um mar de perguntas sem respostas. Se esperarmos que os nossos problemas sejam completamente resolvidos, nunca vamos esperimentar a felicidade. Por isso devemos sorrir enquanto dá, dançar enquanto podemos e quando for necessário, chorar acreditando que ninguém tenha lágrimas suficientes para provocar uma inundação. Este livro é sobre a vida e a vida é isso mesmo.

Não posso deixar de percorrer o Este de África lendo estas estórias. Vou confessar que de lá li poucas estórias e o ápice seria Ngugi. Mas veio-me de repente a África Ocidental, numa estrenha sensação das linguagens, da música e até da dinâmica territorial. A pergunta que me ocorre é sobre as viagens do escritor até chegarmos a este Kwashala Blues.

Todo mundo que nasceu e cresceu no norte de Moçambique na década 90 do século passado sabe que Dar-es-salam era mais perto que Maputo. E isso se notou pela influencia que a África Oriental e Ocidental tinham no nosso estilo de vida. Quando cheguei a Maputo notei pouca ligação com aquela África com a qual eu havia crescido e como um bom cidadão, senti necessidade de trazer essas todas áfricas para a nossa capital. O Kwashala é uma moçambicanização da rumba congolesa.

Deve ser um caminho pouco feito pelos escritores. A forte ligação da narrativa com o seu lugar de origem. Escrever o lugar, as paisagens, as gentes, os sons e até, estranhamente, dá pra sentir os cheiros. Para a tua vida no todo, Nampula é o teu lugar de partida ou de chegada?

Nampula é o meu ponto de partida e o lugar de chegada é o infinito. Uma das coisas que tento fazer é mostrar as pessoas que todos nós conhecemos um pouco de Nampula, mesmo sem ter lá estado e sem ter ouvido nada a respeito da província e da cidade.

Voltemos ao livro. Os processos de escrita. Nota-se que são estórias escritas em momentos separados. Mas elas têm um fio condutor. A figura do pai quase que é a linha que cose a narrativa. O que aconteceu aos textos para terem essa linhagem que roça o romance?

Os textos foram escritos em momentos diferentes, mas havia um fio condutor. Cronicar os acontecimentos contemporâneos de Moçambique com um pendor filosófico. E precisava de uma imagem para nos levar a este exercício, a morte de um pai. O pai é aquele nosso amigo e inimigo ao mesmo tempo. O amamos e, às vezes, o adiamos. E na vida somos assim. Mas a ideia de fazer este quase romance ou quase novela (na verdade nem sei que género de livro é este) veio das conversas e discussões que tive com o Sérgio Raimundo que disse-me que estes textos não eram contos quaisquer, eram capítulos de uma novela.

E, já agora, em que momentos da sua vida se reescreveram essas estórias? Num acto de reflexão, releitura de um percurso (não podemos ignorar que Jessemusse tem a vida toda quase feita em Nampula e parte para Maputo já formado e até a trabalhar) ou terá sido a bendita inspiração isoladamente?

Wow. Existem sim, alguns episódios que podem ser ligados a minha vida e outros que podem ser ligados a vida de amigos e pessoas que conheço. Não vou denunciar-lhes. Preciso que me contem suas histórias para próximos livros. Mas posso partilhar consigo que meu pai faleceu e senti-me de certa forma culpado por não ter aproveitado quando ele estava vivo. Na minha própria vida já também agarrei-me a coisas que me impediam de ser feliz em nome de um conforto. E a filosofia, este exercicio de questionar-se, reflectir, tentar encontrar as várias respostas sobre um problema, tem me ajudado a encarar a vida com sabor. E provavelmente, há pessoas que tem todas ferramentas para ser feliz, mas falta-lhes esta vontade de filosofar em torno da sua própria experiência.

A música, Jessemusse, não queria me referir a ela porque já é óbvio pelo título do livro. Mas é inevitável. Fala-me dela, como ela roubou protagonismo à literatura?

A música é o bálsamo da alma. Há uma música do Murara Jazz, banda de Kwashala de Cabo Delgado, com o título Adelina, em que o poeta fica desapontado porque a Adelina não conseguiu guardar-lhe os seus segredos mais intimos enquanto foram namorados. E quantas vezes na vida não nos desapontamos quando nossa intimidade é exposta? No a música começa um pouco lenta e chega uma altura em que o rítmo aumenta. Nesssa parte, chamada “Okoroxeliya”, mesmo que a música fale de coisas tristes, é mesmo para dançar. E voce sabe que na África, a dança é nossa vida e quando a gente dança, é  como se expíritos nos estivessem a puxar de um lado para outro. E a literatura é um registo da vida. Logo, um protagonista que vive a vida, vai seguramente ter a musica consigo. Se alguém me dizer que nunca ouviu música eu lhe diria que está morto.

De certa forma encontramos muito de memorial e da cultura popular, digamos assim. Conheço um pouco Nampula, é certo, mas bastava-me ler o teu livro para entrar por dentro dos ambientes. O que me leva a querer saber da tua infância, os chãos que você pisou em pequeno, as pessoas que fizeram parte desse momento que parece descobrirmos já adulto, que é a infância? Quero que me fale da tua casa, dos teus parentes, da tua rua, do teu bairro…

Cresci entre Cuamba, Nampula e Memba. Este nomadismo é normal no norte de Moçambique. Em Cuamba vivia no bairro do aeroporto e via os aviões a cairem todos todos, em Memba vivia no bairro do Muaco, há 1Km da praia da Costa do Sol e do campo de futebol da vila e em Nampula, no bairro de Muatala, mais conhecido por Matadouro. No Matadouro vivia com os meus pais, e quando se divorciaram, passei a partilhar entre Cuamba (onde estava o meu pai) e Memba (para onde foi a minha mãe).

Conhecemo-nos há vários anos e nunca perguntei-te sobre os teus pais. Nesse sentido também é interessante para mim ler o Kwashala, porque parte do desconhecimento. Sei, porém, que a tua mãe é uma professora, e o teu pai?

Sim, a minha mãe professora e meu pai, chefe de cozinha. Hoje o meu pai faleceu e a minha mãe é funcionária administrativa. Cada um deles exerceu determinada influencia em mim, talvez seja por isso que enquanto gosto de aprender, gosto também de comer. 

Trabalhou na rádio Moçambique a partir de uma adolescência. Já te ouvia nos programas infantis e juvenis da Rádio com uma forte expressão na palavra. O que significou esse parte da tua vida?

Eu tenho dito que não tenho motivos para não ser feliz. Meu sonho era falar na rádio e consegui. Isso significou tudo para mim. Sai da rádio porque tive vontade de experimentar muitas coisas. Foi para preencher uma série de curiosidades, mas voltaria a trabalhar na rádio sem nenhum problema. Um radialista é um artista e um artista nunca abandona a sua arte.

Os livros Jessemusse, os livros, onde os apanhaste os primeiros. As tuas primeiras estórias, a tua primeira ficção?

Os livros apanhei com a minha mãe e na escola. Primeiro foram os textos do livro de Português do ensino primário (tenho comigo o livro de Português da Sétima Clásse, onde leio e releio Crónica de Carteira de N. Marimbique que fui descobrir mais tarde que era Nelson Saúte) e depois vieram os poemas, Os Lusiadas de Camões foi o primeiro livro que livro.

E hoje o livro virou um trabalho, com a Ethale Publishing. Recordo-me das conversas em Nampula a volta deste projecto, como se fosse uma miram. E hoje, aonde estamos?

Hoje estamos onde a vida nos leva. Essa curiosidade está a levar-me a Coimbra para fazer o meu doutoramento e continuar nessa coisa de trabalhar como investigador, autor e editor.

Jessemusse, tens leituras de invejar. Deves conhecer as narrativas deste vasto continente como poucos de nós conhecemos. Fico a pensar, o que efectivamente andaste por aí a ler e a conhecer. Mas sobretudo, que caminhos para chegarmos à essa literatura mais próxima da nossa realidade, mas tão distante em termos de acesso?

Como sabes, sempre fui um “puto curioso”. A minha ligação com a África Oriental e Ocidental veio da musica que escutamos no norte de Moçambique, depois, quando aprendi a ler, fui eu mesmo procurar. Aproveitei-me bastante da evolução tecnológica e viajei pelo continente africano de carro. Para teres uma ideia, eu sai de Harare a Nampula, via Lusaka e Blantyre. Vamos ser mais aventureiros e curtir este continente sem chiliques.

Quantas rumbas e kwashalas dançaste para te atormentarem e até decidirem o destino do teu primeiro livro de ficção?

Cresci com muita rumba e kwashala. Tenho várias no meu computador e toco nos fim-de-semana para dançar. Eu, o Gércio Alexandre da Rádio Moçambique e o Peter, apresentador da TVM, somos amigos e temos dançado essas coisas nos fim-de-semana. Quero que as pessoas que leiam o livro tenham vontade também de dançar.

Acho que não pararia esta entrevista se não me impusessem os limites da imprensa. Então vamos fechar à moda tradicional, as tais considerações finais. Agora que experimentas a escrita descomprometida, digamos assim, da ficção. De que lado da história ficarias se houvesse um só lado?

Pergunta dificil. Eu quis escrever justamente para não estar num só lado. A literatura não tem lado. A literatura é o respeito pela diversidade que faz o nosso país e o nosso continente. Este Kwashala Blues é uma oportunidade para os moçambicanos conhecerem-se a si mesmos. Mas também para celebrar as dorres e alegrias das pessoas deste país e deste continente.

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