O olho do Inocêncio

“Querem matar-me com uma bala, eu já morro de fome”, foram as palavras que Inocêncio usou pouco antes de perder o olho esquerdo no meio do espetáculo vergonhoso que assistimos no sábado na capital moçambicana. 
Provavelmente, a bala que atingiu Inocêncio foi disparada por um jovem, pobre e sem perspetivas, como a maior parte de nós. Um jovem que depois de disparar contra outros jovens desarmados voltou para sua casa e encontrou os mesmos dilemas sociais que todos nós enfrentámos neste país. 
A bala que atingiu Inocêncio foi comprada com dinheiro do povo, o mesmo povo que foi insultado quando tentou fazer uma simples homenagem para um `rapper´ que cantou as dores de todos nós. 
No dia 18 de março, sob olhar impotente do “arquitecto” da unidade nacional (Eduardo Mondlane), Inocêncio deu a cara por uma causa que acredita ser nobre e perdeu definitivamente o olho. Enquanto isso, provavelmente sentado numa das tantas “barracas” de Maputo ou na babalaza da noite anterior, a maior parte dos nossos jovens esperava por notícias sobre a confusão que se instalou na Eduardo Mondlane em casa.
Inocêncio perdeu o olho, José levou quatro pontos na testa e Vasco tem uma cicatriz nas costas. Parece tudo tão distante de ti e, por isso, é fácil ler isto nos media ou em qualquer rede social, sentado na poltrona do teu pai, enquanto tomas mais uma cerveja. 
Quantos “mártires” este país precisa ter para que a juventude realmente se levante e tome a sua posição? Não clamo aqui por uma insurreição ou revolução popular, baseada em argumentos trafulhas de pseudo-revolucionários que abundam nos nossos cafés e tascas. 
Não clamo por ativismo, clamo por pura cidadania: a noção de que nós pertencemos a um Estado cujas bases residem numa Constituição, que deve estar acima de qualquer “ordem superior”.
Clamo por uma juventude ciente de que este país é de todos nós e, consequentemente, é nosso dever lutar pelos direitos humanos e pela igualdade. Enquanto jovens, como ontem os “libertadores” da pátria fizeram, cabe a nós dizer: ISTO NÃO. Não precisamos da hipocrisia do acidente com aqueles comunicados de repúdio vazios. Precisamos é de uma juventude com bolas, como as que o próprio Azagaia sempre tentou mostrar. 
Massageados sempre pelo copo de cerveja das sextas, estamos todos a procura de uma bolada, de um “Job” e um bom carro. Colocamos em causa o presente e futuro de um Estado olhando para os nossos próprios umbigos, normalizamos a cultura do medo e deixamos que plataformas que deviam ser usadas para um debate público sério sejam tomadas por trafulhas (barrigudos ou engravatados) que procuram espaço no sistema.
Estamos há cinco anos a secundarizar o sofrimento das populações afetadas pela insurgência em Cabo Delgado, um caso flagrante de pura injustiça social onde as vítimas de pessoas com interesses obscuros são mulheres, velhos e crianças. A juventude moçambicana não disse nada. 
Hoje, deixamos que a Polícia, que por nós é paga e cuja missão Constitucional é proteger as comunidades, atire contra cidadãos que não ofereceram qualquer resistência. Uma vez mais, a juventude não disse nada.
Deixámos que eles tirassem o olho do Inocêncio, deixamos que eles cuspissem na memória de Azagaia e, provavelmente, em poucos meses, vamos ter um novo escândalo. O que vamos fazer? Nada. 
Enquanto isso, a cerveja, que até já não anda tão barata, continua o nosso principal refúgio e, num ciclo infinito, adiamos a responsabilidade sobre o futuro do nosso Estado, legando à Quitéria Guirengane e aos poucos ativistas que ainda têm coragem de dizer NÃO o trabalho de Sísifo. 

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top