CÂNCER, DAVID BENE

ARREMESSOS, uma colecção composta por três livros, de três géneros literários e da autoria de três autores, serão conhecidos na sessão pública a decorrer na próxima quinta, 31 de Agosto de 2023, às 17h30, no Business Lounge By Nedbank, em Maputo. Os livros: câncer (poesia), de David Bene; como sombras e cavalos a levitar (romance), de Mélio Tinga; e o alguidar que chora ou a história as pedras que falam (teatro), de Venâncio Calisto são as propostas desta colecção.

Neste contexto fazemos a pré-publicação de exertos dos poemas do livro do David Bene. Boa leitura:

Leitura 1 (P.17)

Com quantas caras se faz um inferno?

Pergunto, minha razão. O inferno é manso. É ríspido. Gente viva. Gente morta. Carne fresca. Carne podre. Charuto cubano. Everest cigarette. Mulher coberta. Mulher nua. Maheu. Nipa. Ford Ranger. Carroça de boi. Papel limpo. Nádega. Quase nada.

Com quantas coroas se faz um inferno?

Pergunto e não procuro respostas. Responde-se para convencer. Para ganhar respeito. Para elevar a raça. A cor. A luta. Para dar sentido ao fracasso. Ao sucesso.

Com quantas moedas se faz um inferno?

Eu diria quatro.

Uma visão extradimensional à provocação. O resto é mesma coisa. Boca aberta. Pronta para trocar palavras por grãos de arroz. E quem compraria a areia?

Eu, Cohéllet.

A pedra de quatro olhos.

Desconheço a diferença entre o grão de areia e o de arroz. Ambos são bem sorteados. Uns eternos, outros efêmeros. Estou equivocado, confesso. A eternidade do tempo parte e desagua na pupila de quem a procura. A pedra é tão duradoura quanto uma amiba. Uma flor. Um coito. Um rombo no aparelho sem Estado.

Com quantos cofres se faz um inferno?

Todos somos eternos ao fim do dia. Todos somos um morto na manhã aberta. Pensar nisso tira a graça da surpresa. Traz angústia e câncer.

Talvez seja aqui onde reside a diferença.

Penso sempre na vacuidade das coisas. E quanto a ti, nalgumas vezes, perdes-te no sexo, na gargalhada, no abraço e no sono.

Ndambi, eu não durmo há séculos.

Conheci o teu deus. Apontei os teus pais com o dedo indicador. Falo-te, num bom português, através deste papel branco. Venci o tempo. O medo. Domestiquei o vento do oriente. Varre a calçada do trono que mostrarei no próximo tempo.

Com quantas agulhas se tricota um inferno?

Há um cadáver linguarudo na palma da criança. Tresanda a horrores, mas segue feliz. Vivo na planície de Marte e durmo no cume do Monte da Lua, disse-me o osso.

Chegados aqui, fulano, resta-me dizer o seguinte: pega na pá e abre a tua cova. Escolhe a tua rosa favorita.

Sonhar é morrer. Aprecio o olho que apodrece nos sovacos da tulipa.

O sonho nasce do cadáver

***

Leitura 2 (P.42)

Cidade irreal,

A porta surda

O cachorro perdeu os dentes

O osso frio e agasalhado

O jardim no poço

As flores são um crânio murcho

O raio não conhece a janela. O vidro

Secou o girassol. O milho. A boca

Rio despovoado. Os sapos são peixes

Aprumados com barbatanas de couro

Os cães são mosquitos

A galinha caça antílopes

Os bois na cidade. São deputados

Lavra-se a terra com gafanhotos

A chuva anciã pousa na copa do cabelo

A areia longe do céu. Distância sou eu

Continuo mais alto que ontem

As árvores morreram de sede

A gravidade irriga folhas mortas

Os tubérculos amamentam as papaias

Sonhador, tu que continuas acordado

Foge enquanto te pertence a perna

Foge enquanto é teu o pentelho

Menti em quase tudo

Não cabem tulipas no jardim da morte

São apenas folhas secas. Acrófobas

Pedindo asilo nas costas da ventania

O vento uma metáfora mal escrita

Fuja com a tua memória

Pátio molhado. Escorregadio. Os deuses lavaram a cara e não limparam a casa de banho. Fujo mais tarde. Amanhã é sempre um bom dia para fugir. Depois de amanhã, melhor. Ademais, mamã ainda não morreu. Morre ao anoitecer. Qual filho abandonaria as cerimônias fúnebres da progenitora? O choro. Os abraços. Os óculos pretos. A pena. A missa do Padre João. O elogio fúnebre. A herança. O tão curto instante em que as moças abrem os sovacos e abraçam as lágrimas. Tudo me pertence por direito. Mamã no quarto. Tosse sangue e ainda se ri do meu desajeitado jeito de ataviar os sapatos. O pátio húmido. Os deuses são imundos. Parto depois do silêncio. Partir é ficar.

(P. 63)

No silêncio do orvalho. Carmelita não cabe no abraço. É cacimba. Com quantas caras se faz um inferno? Há um cadáver linguarudo na palma da criança. Os deuses morrem, fulano. Tornam-se sabonetes. Água vem e são espumas. O tempo é a indiferença da palma. Dorme em paz, Ndambi. Está tudo consumado. O céu perdeu e perdoou. Esta guerra não galardoa ninguém. Morres derrotado. Morres victorioso. O amor é o maior culpado de sempre. Continua sendo a cura e ainda não existe. Ó pedra, tu que és a águia do Cartago. Traz-me a pluma do vento. E serei memória. Uma flor. Uma tulipa.

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