Um cheiro que me abduziu

 

 

Certo dia, o pai da minha irmã adoeceu e ficou internado na medicina 4, do Hospital Central de Maputo, HCM, e desde que a COVID-19 percorreu no mundo todo, as visitas aos doentes tornaram-se inabituais.

Eu, do meu lado, preparei uma sopa com todos os nutritivos alimentos. Ele devia melhorar, é o que todos esperavam, embora ela, a minha irmã, não demonstrasse tal sensação – é como se ele já lhe tivesse morrido.

Havia uma pilha de gente reunida para ver a quantas andava o estado de saúde daquele homem, uns esbanjavam sorriso optimista no rosto e alguns mexiam num nada nos seus celulares, como que estar ali fosse uma perda de tempo. Eu vi.

Tratei de ser a primeira a subir as escadas que me dariam acesso à medicina 4. Atravessei cada visitante e seus cheiros de marmita caseira. A maioria estava embalada de esperança e medo.

O caminho para a medicina pareceu longo, mas não me senti só, algo me escoltava – era um pesar, um calafrio, um temor e um forte cheiro de Medicina.

Cheguei e logo-me deparei com o pai da minha irmã. Estava tristonho, com a feição doentia, tal como os outros companheiros do quarto. Uma horripilante sensação percorreu sobre o meu corpo e tratei logo de desembrulhar o plástico que continha a tigela com a saudável sopa. Misturei-a com a água conservada no termo, só para manter a vegetal sopa numa mínima temperatura. Ele tomou-a como quem dissesse: “Obrigada por me trazeres o gosto de casa até aqui”, de seguida, um cheiro invadiu o meu olfacto e adoeci.

Senti algo a transbordar. Era a morte. Aquela gente ali deitada, suplicando pela vida, na verdade, não estava mais ali, nem mesmo o pai da minha irmã. Senti dó, arrepios e muito medo – do tempo perdido, das noites mal dormidas, das oportunidades deixadas para trás, da má alimentação e do perdão que não dei àquelas pessoas que me feriram. Estas camas são uma oportunidade de recomeço a estas pessoas, com tão pouco tempo de vida, sentem-no.

Invejei-os, quisera eu estar ali deitada e recuar no pretérito tempo, lá onde fiz escolhas erradas.

De tanto perder-me nessas camas, fui teletransportada para o lado de fora do hospital sem sequer perceber. Já não conseguia falar. Queria dizer à minha irmã para que perdoasse o pai, pois aquela cama pode ser sinal de despedida. Não consegui tirar, sequer, uma palavra, só sentia no ar aquele cheiro da medicina 4, do Hospital Central de Maputo, que me fez querer ser benévola.

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