Um óbvio “Cabo Desligado”

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O sol tinha nascido como noutros dias. E a famíla, como habitualmente, estava dispersa no quintal entre os seus afazeres típicos de uma rotina rural, no interior de Cabo Delgado. A gritar, correndo para o pai, o rapaz foge dos três homens armados que avançam em direcção ao quintal.

Sem tempo para qualquer reacção, o dona da casa é atacado com violência e particular dedicação no acto com coronhadas, ponta-pés, botadas e sabe-se lá mais o quê. Atirado ao chão de terra batida da sua varanda de caniço, ao lado da bicleta, somos dados a ver um homem de cofió e camisa branca ensanguentada, indefeso.

Chama-se “Cabo Desligado” e é uma curta-metragem escrita, dirigida e realizada pelo escritor e poeta da Zambézia, Assane Ramadane João, com a produção da Mozdudes Tv em associação com a Dafofo Produções.

Ao longo dos treze minutos e cinquenta e cinco segundos da película, disponível na Netkanema, entrecruzando a poesia e a música, é nos dados a ver cenas de brutalidade e desumanidade perpetrados pelos “Machababos” sob as populações que acabaram abandonando suas vidas, sonhos e projectos nas suas casas incendiadas e saqueadas.

 Sendo um filme de denúncia, apetrecha na gratuidade da morte que vai subindo nas estatísticas sem fundamento. Tiros e catanadas a torta e a direita. “Cabo Desligado” quer, claramente, nos recordar que “desde 2017 a Província de Cabo Delgado vem sofrendo ataques terroristas, dizimando vidas da população e desalojando famílias que vagueiam por ai sem destinos”, como se pode ler na descrição do filme.

Voltando ao homem espancado. Já incapaz de qualquer gesto, ainda é obrigado a assistir a sua esposa a ser estuprada pelos bandidos. A ouve gritar de nojo, de repúdio, de vergonha e por todas as razões do mundo. E no olhar dele, percebe-se que morrer não é só quando há paragem cerebral ou do coração.

Noutro momento, os terroristas juntam a população para um massacre, onde se ouve uma voz feminina entoando o hino nacional seguida por várias outras vitimas o que viera chatear os “machababos” que abrirem fogo contra quase todos.

Apesar das boas intenções, há algumas fragilidades. Como os efeitos especiais do fogo, por exemplo. E o enredo é todo óbvio, o que não seria um problema se houvesse, no roteiro, a mestria de um Gabriel Garcia Marquez.

O “mise en scene”, se o objectivo é chocar e explorar a fundo a questão humana do filme é bem conseguida ao focar-se mais nos personagens que na paisagem queimada a sua volta. E conta com uma boa trilha sonora.  

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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