Maputo: 08:00*

Pedi uma lata de Coca-Cola e uma nata num café da esquina entre a Karl Marx e a Ho Chi Minh a uma garçonete, por acaso, lindíssima. São quase 08:00 e a azáfama típica de uma cidade que sobrevive a partir da economia informal já ganhou forma.
O “rastaman” que vende bijuterias na 24 de julho já está no local de trabalho e a senhora que vende roupas usadas na Guerra Popular já soma três clientes. 
Aos berros, os “cobradores” já promovem desnecessariamente rotas estampadas com letras garrafais nos para-brisas dos “chapas” e as clássicas discussões de trânsito já dominam a 24 de julho, sob olhar impávido dos agentes de trânsito – eventualmente ainda sem salários – visivelmente fartos da indisciplina crónica dos condutores em Maputo. 
Dei por mim sentado sozinho na mesa de canto do café, no meio de meia dúzia de asiáticos e portugueses de chávenas na mão debatendo temas de política interna, enquanto castigam os pulmões tabaco após tabaco. 
Também puxei mais um Palmal azul do maço que tinha no bolso e deixei-me levar por um instante, atento, entretanto, a um agente Mpesa que estava a fazer uma transação rápida para uma estudante que, pelo estado do seu uniforme escolar, não dormiu em casa ontem – tenho quase a certeza. 
Nas esquinas, já cheira à “badjia” fresca. Na Ho Chi Minh, trabalhadores informais e executivos já partilham o mesmo espaço nas longas filas para comprar os famosos pasteis de feijão. Maputo acordou para mais um dia de inverno.
“Qual é o tema do dia”, questiona, aos berros, um velhote que invade o Café com uma edição de um dos principais semanários da praça na mão, roubando a atenção de todas as mesas, que agora assistem ao esforço titânico que ele tem de imprimir para se sentar confortavelmente na mesa com um grupo de amigos que também já atravessaram a faixa dos 60 anos. 
“Os profissionais de saúde juntam-se aos médicos e também vão à greve”, explica ao velho um tipo bem vestido sentado na mesa ao lado e repentinamente começa um debate em torno das revindicações corajosas da classe médica.
A conversa deles desinteressou-me logo nos primeiros argumentos e então voltei-me a mim. Puxei o telemóvel do bolso e olhei para as notificações, entre as cansativas mensagens promocionais das operadoras de telefonia e uma outra mensagem com o teor: “posso pedir-te algo” – Ignorei, imediatamente.   
Levantei-me, deixei o café e fiz-me à rua. Na calçada da Ho Chi Minh, uma tapa de esgoto com uma escrita “Lourenço Marques” levou-me a pensar novamente sobre minha amada cidade. Maputo está a rebentar pelas costuras e o sistema de saneamento, ainda do tempo colonial,  é prova disto. 

A cidade grita, mas parece que ninguém realmente a escuta. No último senso populacional (2017), os dados apontavam para cerca de um milhão de pessoas numa área de 347,69 quilómetros quadrados.  A área metropolitana de Maputo concentra 70% do parque automóvel de todo o país.
Estes parecem bons indicadores para os que efusivamente defendem a pseudo-burguesia de Maputo, mas para mim, muitas vezes taxado de comunista, estes números mostram que estamos a “estuprar” uma cidade que não foi concebida para tanta gente. Associado a isso, a falta de uma estratégia clara de reabilitação do vasto património que a cidade esconde é um outro problema. 
A histórica Mafalala está entregue à sua sorte, a minha amada lixeira do Hulene continua por encerrar e em Chamanculo, quando chove, há quem não vai ao trabalho. São problemas que nunca são debatidos com seriedade, mas nos afetam diretamente.
Vamos agora para as autárquicas e, uma vez mais, a conversa hoje são os cabeças-de-lista, entre pessoas totalmente desconhecidas, apresentadores e pastores que querem tentar uma incursão política, num momento em que o país tem a oposição praticamente decapitada.
Quem são estas caras e de onde saem são as perguntas que fazemos. Ninguém está preocupado em avaliar os planos e as estratégias destas figuras e, com base nisso, fazer escolhas conscientes, baseadas nos manifestos políticos, como determinam as regras de qualquer sociedade democraticamente bem-educada. 
Enquanto avaliamos caras e não manifestos, Maputo morre um pouquinho todos dias. Em cada galho das acácias cortadas sem qualquer estratégia pelo município, em cada garrafa de 2M atirada à rua (e que acaba nos esgotos já entupidos), em cada urina de mais um bêbado que precisa se aliviar após noitadas de álcool, Maputo morre e nós somos cúmplices.
A minha “profunda” reflexão sobre a cidade terminou mesmo na Ho Chi Minh, depois que percebi que precisava urinar e, como um bom bêbado, procurei a árvore mais próxima para me aliviar. A árvore mais próxima que encontrei estava mesmo ao lado do Comando Geral da Polícia. Aliviei-me e fui-me embora.

*Publicado no semanário Evidências

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top