A Visualização Única da Bunda do Felisberto*

Deixei o trabalho numa sexta-feira de final de maio com a pressa de quem realmente precisa de uma cerveja. São quase 23:00 e, na capital moçambicana, infelizmente, a economia morre depois das 21:00.

Das poucas opções que existem, para quem precisa comer ou (sobretudo) beber depois de um dia “chato” de trabalho, o “Press Club” anda entre os locais preferidos pela pseudo-burguesia da capital moçambicana.

Desci pela 24 de julho com um ar cansado e, já quase no Ministério da Educação, dei de cara com dois simpáticos membros da PRM. Pediram-me para tirar tudo que tinha nos bolsos e, enquanto revistavam-me, um deles perguntou se eu fumava Suruma.

Sim, respondi. Olharam os dois para mim com algum grau de espanto e eu acrescentei: fumo sim, só quando estou na África do Sul. Caímos todos na gargalhada, despedi-me e pus-me à distância.

Quase à porta do Press Club, conheci um tipo simpático que se chamava Felisberto. Perguntou-me quantos metros de altura somava e eu disse dois, como normalmente faço para satisfazer as pessoas que quase todos os dias fazem a questão de lembrar-me que eu sou alto – como se eu não soubesse.

Apesar da pergunta parva de entrada, Felisberto pareceu-me uma boa figura. Um pouco gordo , mas flexível no argumento e na articulação. Parados à porta do Press Club, por quase 10 minutos, discutimos política, entre a invasão russa da Ucrânia, a inércia da oposição em Moçambique e até os supostos “interesses externos” da sociedade civil moçambicana.

Fiquei com uma boa impressão do Felisberto, mas eu precisava mesmo de uma cerveja e, enquanto eu marcava a distância de quem precisa ir embora apesar da conversa agradável, ele sugeriu que trocássemos contactos para um eventual café. Claro, respondi. Eu fui ao bar e ele à sua vida.

Passaram-se quase duas semanas e, numa noite qualquer, Felisberto meteu conversa no meu whatsaap. Perguntava-me como é que eu andava com este frio que assaltou Maputo e eu disse que estava bem, embora cansado da rotina tóxica de uma cidade onde todo mundo está à procura da próxima bolada.

Do nada, sem se quer me preparar, Felisberto decidiu mandar uma imagem (de visualização única) da sua bunda com a legenda: “preciso de umas palmadas”.

A sunga preta, que propositadamente atravessava as nádegas peludas de Felisberto, ficaria na minha memória por três noites seguidas, assombrando-me em longos pesadelos em que a trilha sonora era sua voz a pedir por “mais palmadas”. O choque foi imediato.

Devo admitir que não é a primeira vez que um homem me “abordava” com intenções obscuras em Maputo, mas a brutalidade deste episódio realmente chocou-me. Senti-me sujo simplesmente por ter sido o único a ver aquela imagem e, por dias, no chuveiro, pensei até em procurar assistência psicológica, como as vítimas de “estupro” nas vulgares cenas de cinema de Hollywood.

Pior, na noite do trauma, a minha conversa com o Felisberto não terminou ali. Depois de mandar-me a imagem, escrevi-lhe respeitosamente a explicar que eu não era gay e que até defendia o direito desta minoria, apesar do choque que eu ainda carregava após ver aquela imagem que ninguém mais no mundo poderá ver.

Mas Felisberto não estava preocupado com as minhas convicções ideológicas ou minhas boas intenções para com comunidade gay de Moçambique, ele tinha apenas uma missão: ter-me a dar palmadas na sua bunda por uma noite e nada mais.

Depois da mensagem que lhe escrevi a esclarecer que eu era hétero e, assumindo o seu nível de lucidez em função da conversa que trocamos à porta do “Press Club”, pensei que o assunto estivesse resolvido, mas Felisberto voltaria à carga – desta vez mais brutal que nunca.

Felisberto mandou-me uma nova imagem, ostentando cinco mil meticais em notas novinhas. A legenda era: “não queres dinheiro?”.

Senti-me sujo e, no momento, insurgi-me contra o Felisberto, numa reação que se assemelha a de uma mulher que não quer ser confundida com uma prostituta.

Escrevi-lhe um novo texto manifestando o meu total desagrado e já com algumas ameaças nas entre linhas. Mas, uma vez mais, Felisberto mostrou-se destemido e atirou: “Quando precisares de dinheiro, avisa-me”, escreveu.

No mesmo momento, desisti da conversa. Concluí que nada mais havia por fazer por Felisberto. Encerrei a conversa e o bloqueie definitivamente.

Passaram-se algumas semanas e ontem, no final do dia, apeteceu-me voltar ao “Press Club” para um copo, mas não tinha qualquer dinheiro e, entre amigos e colegas, meu nome já está na lista negra de tanto crédito “malparado” que tenho acumulado – devo quase metade da cidade de Maputo. Por um instante, devo admitir, pensei na bunda de Felisberto.

*Publicado no semanário Evidências de 15 de agosto

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