Uma voz. Uma guitarra. E o mal não cessa

Lê em voz alta: Afinal há quem escute Dire Straits, se delicie com Making Movies, que rouba? Aquelas cores sonoras, aquela mestria do Knopfli são só poesia. Mas não é a vida.

Sentado na sala, num charo, luz fusca e parte dos contornos do seu rosto se revelam um tanto quanto insatisfeito. Ao fechar o laptop, como a lâmpada está queimada no extremo da sala em que nos sentamos, ele já quase não se vê. Apenas ouço a sua voz.

Não gosto deste parágrafo, algo me incomoda nele, soa-me a ingenuidade – diz-me o que já adivinhava. – Não é muito minha vibe essa banda. Mas já, pela tua idade, devias perceber que nessa caixa que se chama vida, há muitos inesperados itens. Pareces aquele outro que se incomodou com a circulação da imagem de partes do corpo do rei, que afinal, já há muito vai nu – respondi-lhe.

Não entendi – reagiu. Nem eu – respondi. Começamos a rachar. A dado instante da gargalhada, simultaneamente nos perguntámos, mas estamos a rir de quê, afinal? Continuamos a rachar até doer barriga. Tens de terminar esse artigo ou texto, sei lá como vocês chamam essa cena – atirei-lhe meio ofegante.

Mas de verdade, eu acreditava muito nas pessoas e dei-me mal mesmo. Eu achava que quem ouvia aquela música era boa pessoa, de coração puro, altruísta e tal – continuou. Estás a ma viajar? – perguntei-lhe.

Saimos para a varanda. Preciso ver a cidade, talvez isso lubrifique as minha ideias – sugeriu-me. Concordei. De costas para a avenida, para evitar o ar e poder acender o pallmar azul, apenas ouve o roncar dos motores que, como ele neste momento, soam sem harmonia.

– A poesia não é a vida. Ela só reside nos livros – comentou, já a soltar o fumo pela boca e pelo nariz.  São 22.00 horas conforme marca o relógio. E a cidade se estende para lá do horizonte, com focos de luz que, vista do décimo primeiro andar, parecem as pétalas amarelas da flores  de acácias espalhadas nos passeios em Abril.

Da avenida em frente ao prédio ouve-se uma bozina e sirene. Normalmente é a polícia num desses Mahindra. Ele se vira para traz para ver se não é nada com o seu carro. – Eix, caralho, bateram o escova do meu vizinho, constatou. A sério? – pergunto. Sim, responde.

Espreito, mais próximo do corrimão, pela enchente ali não dá para ver o impacto. O convido a descermos, talvez, alguém precise de uma ajuda, que podemos dar. Não, estou aqui a procura de uma forma de escrever, de uma maneira única de contar a história – disse-me. E?, perguntei. Um seco  “não vou descer”, foi o que ouvi. Ok, soltei sem muito ânimo.

De volta a sala, abre o laptop, põe-se novamente a escrever. Bingo! O ouço gritar depois de instantes em que só o teclado do laptop falava. Entusiasmado, lê: o canto dos grilos, o peso do vento em contacto com o ramçal de capim alto, quase na altura do joelho é que recordam que ainda há vida. É noite. Um escuro espesso esclarece que estamos num inverno severo, como nunca antes se viveu nestas terras.

– Que nice. E?

– O quê?

– Termina aí?

– O quê?

– O que estás a escrever…

– Ainda não sei, pode terminar pode continuar, diminuir ou mesmo ser apagado.

– Ok. Eu, porém, não encontro ainda relação com o parágrafo de entrada, aquele que falas dos Dire Straits e este do ramçal – assumo.

– Quando iamos recuperar os meus sofás roubados, entramos para uma casa assim, com o ar de abandonada e capim. Lá no fundo havia um tipo viajado que tropeçou nas encruzilhadas da vida. Ele tocava com particular mestria “Brothers in Arms”.

Ainda que indignado, ouvir aquela cena era, claramente uma espécie de calmante. O tal contraste que tenta explorar no texto. – E ele era o ladrão?, pergunto. Não, o puto dele, que dava voz a canção. E esse ao nos ver chegar, pôs-se a cantarolar “Making Movies”.

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