O pénis do Guzelh* 

Fiz-me a rua na última sexta-feira com o mesmo sentimento de tédio que me acompanha todos dias. Pareceu, a priori, um dia normal e estava disposto a, uma vez mais, colocar a máscara da conveniência e esbanjar a falsa simpatia que me é exigida diariamente para não sair a socos com as pessoas face aos elevados níveis de mediocridade em Maputo. 
Mas não era um dia normal, concluí depois de ouvir a conversa, com gargalhadas à mistura, de um grupo de estudantes na esquina que me fornece religiosamente “pão e badjias” na avenida Ho Chi Minh. 
O tema da conversa das estudantes era um vídeo íntimo supostamente de Guzelh, um jovem aparentemente famoso que, em função do meu desinteresse pelo “mainstream”, nada sei sobre a sua vida.
O facto é que este vídeo íntimo circula à velocidade da luz e está a ser o principal tema nos programas de entretenimento das nossas televisões e nas redes sociais, num debate que tabela entre o pénis do homem, a troca de fluidos orgânicos sem proteção e o facto de ele ser casado com uma outra mulher, que também desconheço.
Obviamente, por honestidade intelectual, fui obrigado a procurar pelo vídeo e, sem muito esforço, caiu-me no Whatsapp, a partir de um entre os vários amigos de integridade suspeita que eu tenho na minha lista de contactos.
Devo confessar que vi o vídeo, pelo menos, três vezes: a mulher realmente é linda, refira-se. Escrevo isto com todo respeito possível pelos angolanos, país irmão e do qual a mulher, também supostamente famosa, é natural.
Mas o que me intriga em toda esta história não é o vídeo íntimo de uma “celebridade” a circular, até porque sou defensor da “sétima arte”, seja ela pornográfica ou não. Isto acontece em qualquer lado do mundo e é uma pérola para as plataformas da vulgar indústria cultural ocidental. 
A minha preocupação em toda história é o veemente interesse que este tipo de temas desperta na nossa sociedade, principalmente entre a juventude urbana, maioritariamente desempregada, sem perspectivas e que assiste, quase sempre embriagada, a delapidação de um Estado.
Teoricamente, a responsabilidade na promoção destes temas talvez seja da “imprensa cor-de-rosa”, se tomarmos em consideração os fundamentos da teoria da “agenda-setting”, de Maxwell McCombs e Donald Shaw, que defenderam que as audiências não só são informadas pelos media, mas também são condicionadas sobre o grau de importância que devem atribuir a um tema, em função da sua visibilidade.
Embora haja um certo nível de imposição destes temas nas nossas televisões, apoiada pela proliferação de “blogs”, canais de youtube e televisões amadoras, parece-me que estes são os temas que realmente interessam as pessoas, embora sem qualquer relevância para os tantos problemas que enfrentamos enquanto sociedade.

O pénis do Guzelh e as peripécias da sua vida pessoal deviam ser dois aspetos absolutamente irrelevantes no debate público da juventude de um país que está entre os 10 mais pobres do mundo, com a taxa de mortalidade infantil de 53 em cada 1.000 nados vivos e outros inumeráveis problemas em setores básicos, como educação, saúde e segurança – com a barbárie que ainda se assiste em Cabo Delgado.
Obviamente, as futilidades sobre estas celebridades são úteis para o sistema, tal como a alienação mental que ganha cada vez mais espaço entre os jovens com o surgimento de novas igrejas lideradas por pastores trafulhas. Estes temas distraem a camada juvenil face aos escândalos cíclicos que assistimos na política, economia e outras áreas.
Há poucas semanas, num claro e declarado “golpe” à democracia, a “ditadura da maioria” do partido no poder no parlamento aprovou, à revelia da oposição, uma alteração do prazo de marcação das eleições gerais que abre espaço para um eventual adiamento das eleições distritais e, com base na maioria qualificada da Frelimo, torna também possível a revisão dos limites de mandatos do chefe de Estado.
É obviamente o começo de alterações políticas profundas que terão impacto direto na vida de todos, incluindo os nossos filhos, mas este tema não merece a atenção da nossa juventude urbana, que está ocupada com reflexões profundas sobre o pénis do Guzelh, as suas mulheres e tantas outras futilidades que alimentam as nossas conversas nas frequentadas tascas do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico.
Que não se confunda a reflexão que trago com qualquer lição moral, longe disso, não me considero um exemplo a seguir. Cada um é livre de debater e escrever sobre os temas que considera relevantes. Ademais, este tipo de episódios é comum em qualquer lado do mundo, tomem o caso da Kardashian como exemplo. 
O problema é que nós não estamos nos Estados Unidos. Nós estamos em Moçambique, um país cujo 62% da população vive abaixo da linha de pobreza, segundo dados oficiais. As nossas fragilidades enquanto Estado são tão profundas que não nos podemos dar ao luxo de colocar este tipo de futilidades entre os principais temas de debate público. 
A maior parte da população moçambicana vive no meio rural e esteve sempre fora do debate político sobre o futuro do país, excepto quando a Frente de Libertação de Moçambique precisou da população para lutar contra o abominável regime colonial português.    
O punhado de pessoas que fazem parte daquilo que eu chamo hoje de juventude urbana (com acesso a energia, internet, educação e, sobretudo, informação), tem o dever de promover reflexões sobre problemas que realmente são relevantes, trazendo ao debate público a população rural, esquecida há décadas, embora a única capaz de realmente fazer revoluções neste país. 

Publicado no semanário Evidências, na coluna “Um Café e a Conta”* 

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