Um parasita nas minhas costas (2)

A brisa entra na porta entre-aberta, toca a minha pele, tenta apagar vestígios, mas o meu suor ainda tem a tua essência, o meu corpo sem fôlego gagueja, recorda, procura palavras, invoca o silêncio e adormece. 

Um fio de saliva corta o fio de memória, as teias que construíram um sonho que hoje mal recordo. Acordo, já são 19h00, por sorte a casa só foi invadida por formigas, os lagartos no tecto, nas paredes e no quintal protegeram-me contra todos os perigos. O computador portátil entre aberto, a TV reproduz em loop a série que mal consegui assistir, o teu prato está na pia, a água fria toca os dedos que deixaram algumas impressões a tarde tranquila de Janeiro.

Um pássaro entra, fecho a porta, cortinas, acendo a luz e a ave pousa no meu colo, procura conversar, mas estou gago, inquieto, sem bateria, desligado, o celular pode pintar um retrato que em nada corresponde a realidade. 

Tiro o pássaro do meu colo, coloco o celular na carga e mando as palavras atenciosas que trazem um sorriso de satisfação ao raio de sol. O pássaro continua a sobrevoar o meu espaço, senta mais uma vez no meu colo, procura interceptar o MiG-15UTI, que sem argumentos dá piruetas para a evitar a ave que tem consciência dos compromissos de Gargarin.

Com a medalha da Ordem de Lenin no peito, agarro as penas da ave com postura, o pássaro arranha-me as costas, mas continuo firme, ensaio passos robóticos seguindo a segunda valsa. Apesar de mecânico, aposto que Shostakovich ficaria orgulhoso de mim. Encosto o pássaro na porta, sinto que o MiG-15UTI está instável, em parafuso, colapsa, o factor tempo não foi observado. 

Abro a porta, sinto os arranhões nas costas, doem-me as costas, a brisa bate, sinto que perdi o controle, longe do espaço: Iuri: vejo a fumaça, meus feitos. Reparo para os passos de despedida do pássaro com atenção e percebo é um Sukhoi Su-15, tão calculista, meticuloso, mas emocionalmente instável. 

Fecho a porta, a sós com silêncio, adormeço, minha carne confusa repousa com dores de costas, meus olhos fechados, minha consciência faz perguntas: quem me dera, gostaria de poder dedicar a minha vida, a minha vida para algo maior, algo maior que eu. Acordo, tomo quatro tiros de gin e percebo que a terra sempre gira no seu eixo e eu estou a girar em ecopraxis. Respiro fundo e percebo que não é meu pensamento, é apenas a primeira estrofe de Moses Sumney. 

Que lixo és tu: quem me dera ser levado por estas dores que picam as minhas costas. 

Pisco, paraliso, amanheceu e a minha porta está entre aberta, será que os lagartos cumpriram a sua função? 

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