Prosa? Nunca tivemos.

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Obra de Matheus Sithole

Cheira a café. O aroma vem da pequena chávena do balconista com os óculos mais para o nariz que para os olhos. A posição dos óculos o leva a um arregalar que parece pretender dividir o seu olhar entre as lentes e o natural. No fundo, a Party Box reproduz LM Radio, que por acaso toca “So lonley”, dos The Police.

Indiferente ao semblante do cliente parado a sua frente doutro lado do balcão que os separa, aponta a pistolinha a laser ao código de barras na contracapa, onde o software de vendas lê o preço do livro e projecta no computador. O resto é enter, enter, enter e o teclado a gritar como na altura da máquina de escrever. O recibo sai e, pela primeira vez sorridente naquele contacto, com o olhar já no cliente, diz, com o saco plástico timbrado com o nome da livraria: “Boa leitura, volte sempre!

Com uma disposição que recorda o entusiasmo de qualquer réu no instante em que ouve a condenação de pena máxima da voz do juiz do Tribunal Supremo, o vendedor vem ter, com um desajustado Bom dia. Sim, posso ajudar? – pergunta com uma voz fraca. Sim, respondo. O que procura? – reage. – Não sei ao certo, mas… – retorno indeciso. – Assim fica difícil – já chateado, quase a virar as costas, comenta. – Ok, sei que não quero poesia, meu estado de espírito não está para a coisa neste momento. Pego no celular para ver as sugestões que fui anotando no Keep. O smartphone congela.

Devolvo o olhar ao moço que me atende. – Talvez uma prosa possa me satisfazer – devago em voz alta. A impaciência do vendedor que já não era disfarçada toma o seu rosto no qu desenha-se em rugas na testa. – O que me sugeres? – pergunto, ignorando seu aparente estado espírito.

Baixa os braços cruzados, não em gesto de derrota, pelo contrário. – Romances best seller’s estão naquela pratileira – aponta com o braço direito para a nossa esquerda – clássicos, contos e novelas ali -prosseguiu, a indicar o outro extremo da livraria. – Isso de prosa, nós nunca vendemos aqui – concluiu.

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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