O Toyota Hino do Chavisso*

No interior de Chibuto, lá para os meados da década de 90, Chavisso tinha sete mulheres. Comprometido com a cultura e os “bons” costumes “changanas”, Chavisso se esfolou no trabalho na África do Sul para dar as suas “esposas” o melhor: ergueu uma casa para cada uma das suas mulheres.
Ao volante do seu amado camião, um Toyota Hino de 15 toneladas, rasgou infinitamente a EN1 a caminho das terras do “rand” para alimentar as suas esposas, parando, por vezes, em Maputo, onde conheceu mais uma e, como manda a regra, construiu uma outra casa e a deixou lá.
Viajou entre Chibuto, Maputo e Johannesburg muitas vezes sozinho, mas sempre preocupado com bem-estar das suas mulheres, algumas das quais já carregavam rebentos. Chavisso acreditava que amava todas elas da mesma forma, como se realmente isso fosse possível. 
Na memória, Chavisso carregava o trauma de uma infância sofrida algures no vilarejo de Joaquim Chissano, dilema clássico de uma adolescência marcada pelo paradoxo entre a miséria das comunidades e a beleza das terras onde nasceu.
Agora, o jogo tinha mudado. O negócio de transporte que decidiu abraçar na juventude estava maior do que um dia esperou e, consequentemente, ele podia pensar na próxima mulher, moçambicana ou sul-africana, era indiferente.
Com pouco mais de 45 anos, 10 filhos (conhecidos) e sete mulheres, a primeira coisa que Chavisso fazia depois de acordar era abrir o capô do seu Toyota Hino, por vezes sem necessidade alguma já que era rigoroso com as datas da manutenção.
Chavisso nunca realmente soube demonstrar o amor que tinha pela família, embora fosse tanto. Para ele, prover era sinónimo de amor. As suas “amadas esposas” também nunca realmente se importaram. Em Chibuto, ninguém precisa de flores quando a mesa está farta.
As suas viagens à “terra do rand” podiam durar seis meses, mas Chavisso sempre voltava para casa, onde as suas mulheres e filhos o esperavam ansiosamente. Normalmente, para racionalizar o tempo, não levava uma semana em uma única casa. Era necessário estar em movimento, sempre.
Entre os filhos, que pouco se conheciam, a expectativa do regresso do “Papá” era um dilema comum. Com os olhos na rua, as crianças cresceram à espera de ouvir o ensurdecedor roncar do motor daquele Toyota Hino ao dobrar da esquina.
Entre os vários veículos que tinha, havia algo especial neste Toyota Hino. Foi seu primeiro carro, palco, provavelmente, de diversas aventuras da perigosa estrada entre Moçambique e África do Sul.
Estacionado o camião, quase sempre cheio de mercadorias, um abraço rápido à criança, que estava feliz em ver o seu progenitor, era o máximo que ele sabia fazer. Para o menor, aquele abraço carregava consigo todas palavras de amor que ele nunca conseguiu verbalizar. Era suficiente.
O som do motor daquele camião ficaria eternizado na memória de alguns dos seus filhos, bem como o cheiro de viajante recém-chegado que invadia a casa sempre que ele voltasse, principalmente para as pomposas festas do final do ano em Maputo ou em Chibuto.
Numa manhã de Novembro de 1994, Chavisso acordou pronto para mais uma viagem às terras do “rand”. Mas o seu camião estava com problemas mecânicos e, por isso, a viagem tinha de ser feita pelos transportes semicolectivos. 
Ele estava com a sua mulher de Maputo, com o seu filho de quatro anos. Enquanto ela organizava sua mala, Chavisso tomou um banho rápido, sentou à mesa e esperou pelo café, que rigorosamente estava à mesa antes dos 8:00.
Tomada a refeição, levantou-se, beijou a sua mulher, olhou para o seu menino e disse: “cuida do camião”. O rapaz sorriu, sem a clara noção da missão que lhe era conferida. Chavisso pegou na mala e saiu.
O rapaz ficaria, através da janela do seu quarto, a olhar o Toyota Hino estacionado no quintal por dias, à espera que o seu pai voltasse para ouvir, mais uma vez, o ensurdecedor motor daquele camião.
Passaram-se semanas e o menino continuou na janela, à espera do velho Chavisso. Até questionou a mãe sobre o paradeiro do seu pai e ela disse que estava na África do Sul a trabalho. 
Na verdade, Chavisso morreu violentamente no mesmo dia em que ele saiu de casa, após o despiste do semicolectivo em que ele seguia em Nelspruit, a caminho de Joanesburgo.
Embora escutasse durante a noite os choros da sua mãe trancada no quarto, o rapaz só viria a descobrir um ano depois que o seu pai estava morto. Até a sua mãe tomar coragem para o explicar o que era morte, o menino continuou a cuidar do Toyota Hino, assistindo, sem margem de manobras, a degradação daquele camião que o seu pai amou intensamente, por vezes mais que a própria família.
O Toyota Hino acabaria por ser vendido, à revelia do rapaz, pelos irmãos de Chavisso. O rapaz cresceu com sentimento de quem falhou com o seu pai, na medida em que cuidar do camião foi a última missão que lhe foi deixada por um pai que andou sempre distante.
Quase trinta anos depois, o rapaz cresceu e agora, numa busca absurda, está à procura da pessoa que, em 1995, comprou aquele Toyota Hino. Ele quer recuperar o camião, independentemente das suas condições, para cumprir a última missão que o seu pai lhe deixou.


Publicado no semanário Evidência de 25 de Julho de 2023*

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