Um parasita nas minhas costas (1)

Primeiro dia de trabalho do ano, pés descalços, meus dedos pisam o chão húmido, o septuagésimo raio de sol toca a areia, acaricia minhas impressões digitais estampadas naquela terra que aceitou receber minhas marcas. 

Firme entre as minhas dúvidas, meus erros, estou tão nu, miserável, tão bambu, mesmo com os pés fixos na areia. Meu terceiro membro faz sombra, é tão frio, esta carne é tão vulnerável, a rua tão vazia, lá dentro, os lençóis tão fartos de serem cúmplices, já nem sabem, nunca souberam, jamais saberão, apenas enxugam o suor, seguram-me pelas mãos, enquanto o meu coração palpita, lento, às vezes sem fôlego, enquanto o sono vem. As raízes dos teus cabelos fazem marcas no meu peito, pequenos caminhos, trilhos que sigo com os olhos semicerrados. Sei que não há Shangri-Lá, nem Nirvana. Embalado pela fadiga, meu corpo anestesiado, relembra os instantes, medita no prazer que partilhamos, flutua, cai, pois, o champanhe não disfarça a amargura, o Rohypnol melancólico analisa minhas escolhas e do nada sinto tua cabeça a se movimentar, tua silhueta tímida muda de personalidade nos primeiros acordes de “You Know You’re Right”. Cobain: seguro tua mão, ansioso, firme, emocional, mecânico; Nostradamus: leio as linhas da nossa separação; Kurt: Sinto-te há 20 milímetros, penso em colocar as pálpebras em repouso, mas nas trevas a pólvora da Remington cria nevoeiros que esfriam e murcham boas intenções, então deixo minha vista em alerta a reparar para a refeição, deixam-te transbordar na cama, sem medo das formigas esfomeadas, atraídas pelo sabor ingénuo, adoçado, que torna-me cúmplice desta valsa silenciosa. Os ecos da casa, a porta entreaberta, os passos dos vizinhos têm a mesma cadência que os assobios das molas do meu colchão. Nossas línguas nadam tranquilas nas mesmas águas, dois mísseis com destinos opostos, juntos no mesmo céu, desenhando nuvens que se entrelaçam e deixam a imaginação dos lagartos comporem o último esboço da banda desenhada. 

Mais uma vez meu peito tem caminhos, cabelos com gotas de suor, que me fazem suster a respiração e mergulhar profundamente num mundo que desconheço. Acordo, vejo que as peças de roupas estão dispersas e o jardim ainda nos vê ingénuo, caminhamos juntos até a cascata, as gotas que caem fazem-nos animais de água doce que ensaiam piruetas sem intenções de aplausos, sem medo das flechas que podem tornar o simples em equações quadráticas. 

Enquanto o tempo enxuga o dia, reparo para meu celular sem vida, meus dedos percorrem o veludo do sofá, espetam soro na veia, ligam as máquinas, em breve o desfibrilador estará quente e ele ressuscitará. E aí surgem os problemas, mas doem-me as costas, tenho um mau estar, que qualquer médico notará e com razão aceitará que serve como justificativa para minha ausência. 

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