Demitir o medo

Não julgue o livro pela capa, é daquelas expressões que no quotidiano usamos para chamar a atenção de alguém cuja postura é condenar pelas aparências. Na semana passada, o adágio ganhou vida com as denúncias de ameaças que o Sérgio Raimundo, que assina Poeta Militar, estava a sofrer por causa da putativa obra literária “As ancas do camarada chefe”.

Como o autor fez questão de repetir nas entrevistas que foi dando a propósito, era muito cristalino que o fulano que o ligou, afinal, se quer tinha lido o livro. O que me é mais claro com a colectânea de crónicas a mão. É claramente uma obra crítica ao status quo vestida pela poética e bom humor que são característicos do Sérgio.

Este livro regista, a bem da memória, como fez questão de frisar o engenheiro e escritor Álvaro de Carmo Vaz, na cerimónia de apresentação do mesmo, o nosso dia-a-dia, a nossa precariedade, a vulnerabilidade das mulheres e crianças, os dilemas de uma juventude, a incerteza que paira num futuro residente em parte incerta. Enquanto artista, desta forma o autor cumpre o seu papel, pois é essa uma das funções da arte, registar um tempo.

A pensar no que se sucedeu e na enchente que testemunhei na abarrotada Biblioteca do Camões – Centro Cultural Português em Maputo no dia do lançamento, algumas reflexões me ocorrem.

Para começar, a bem da literatura moçambicana, uma das mais promissoras – na minha humilde opinião – dos países africanos de língua portuguesa, chega ao centro dos holofotes um jovem autor que vem trabalhando há vários anos na escrita.

Me recordo de o ver em 2013/14 a declamar poemas seus nas Noites de Poesia do extinto ICMA numa sexta-feira – era um evento de referência na cidade para o qual iamos nós outros depois de buscar um exemplar gratuito do Jornal A Verdade. A labuta de Sérgio Raimundo segue e é o que se vê no Facebook, em jornais nacionais e internacionais relevantes. Testemunham o suor da sua oficina os prémios que com mérito tem recebido.

É certo que o que o trouxe ao centro nestes dias não foi a sua qualidade literária – que até duvido que quem o ameaçou tenha competência intelectual para qualquer avaliação coerente e articulada – mas fica claro para todos que há novos escritores e que é preciso prestar-se atenção a eles, lê-los, apoiá-los. Refiro-me a nomes como Miguel Luís, Amosse Mucavele, Venâncio Calisto, Mélio Tinga, Nelson Lineu, Álvaro Taruma, Hirondina Joshua, Virgília Ferrão e tantos outros.

Por outro lado, o número de pessoas, na sua maioria jovens, que esteve presente, põe em cheque o coro “a juventude não lê”. Canção repetida, muitas vezes, por quem não parece se perguntar: quem é que deveria ter orientado nessa direcção e não o fez? Talvez por medo da resposta. Enfim.

O evento também mostra a força que hoje tem as redes sociais. É através do Facebook que o Militar se fez conhecer para uma grande maioria dos seus leitores. Sobre isto me vem a memória um artigo que escreveu Egídio Vaz em 2012 – na altura o admirava intelectualmente -, na revista científica da CEC, sobre o que estava por vir com o acesso ao preço do bolso comum dos smartphones, login na net e social media poderiam fazer destas últimas a nova esfera pública. E é a já não tão nova Agora.

Não deixa de ser irónico que o tiro do ameacador tenha saído pela colatra. Na tentativa de plantar o medo, adubou e vemos florir a coragem do autor e de quem foi lá presenciar ao lançamento,  comprar o livro, cumprimenta-lo. Moçambique não pode, não deve ser o país do medo, parafraseando Álvaro de Carmo Vaz, autor do romance “UM RAPAZ TRANQUILO Memórias imaginadas”.

Outra ironia engraçada está em nos recordarmos que o proto-nacionalismo moçambicano ter vindo a superfície através das letras que também foram censuradas e combatidas pelo regime de então. E agora, já bem baixinho, em menos de seis meses, o país assiste a episódios particulares cujos protagonistas são artistas: a morte do Azagaia e a marcha manchada de 18 de Março e este lançamento. O que ambos têm em comum é esta demissão do medo dessas ameaças sem rosto.

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