Amosse dando vida ao ditado: “se essas paredes falassem”

Em “Vestígios do Silêncio”, livro inaugural da  “Residência Literária”, Amosse Mucavele apresenta  uma poética concebida como objecto de desvendar os mistérios, de celebrar a memória transnacional dos ritos de passagem e ruptura.

Lançada há dias, no Camões – Centro Cultural Português Maputo, a obra se debruça sobre “um desencanto de repensar as origens, as mutações da dor, as variações dos mapas territoriais e sociais das duas cidades [Maputo e Lisboa], partindo de um ponto de vista subjectivo das estórias destes lugares que simulam pequenos sarcófagos sensíveis a qualquer olhar”.

O exercício mucaveliano é feito a partir de uma reflexão sobre a longa experiência de contar histórias dramáticas e esquecidas dos edifícios  abandonados das cidades de Lisboa e Maputo, que, nalguns casos, partilham mais semelhanças do que se possa imaginar.

“Este é um livro em que o silêncio se converte em imagens nascidas da memória histórica dos lugares e da sua impressão no olhar do poeta”, comenta o consagrado ensaísta, poeta e professor universitário português, Nuno Júdice.

Essas imagens do passado, prossegue, cruzam-se com as que emergem de um presente que nos fala de uma relação pessoal com um mundo construído a partir de objectos, de elementos naturais, de pessoas, tudo evocado quase só numa alusão que abre ao leitor o campo da imaginação.

“Estamos assim perante uma construção de que o poeta é ao mesmo tempo o arquitecto e o pedreiro, e é este uma das grandes qualidades desta poesia: dar-nos a ver o desenho anterior ao fazer do poema e levar-nos a acompanhar a sua execução, sentindo o peso dos seus materiais”, observa Nuno Júdice, autor da Antologia Poética – Nudos das obras de Eduardo White.

Restam, acrescenta, no fim, os vestígios do silêncio que se faz quando, após a leitura, saímos do teatro das palavras para um mundo que elas transformaram nessa alquimia verbal que é, ainda, a chave da escrita poética”.

“É constante, na poesia de Amosse, uma inquietação em relação ao espaço, aos prédios de Maputo, muitos dos quais envoltos em sombras e esquecimentos, mesmo os arquitetados com arte, como os de Pancho Guedes, cuja genialidade é decantada em um poema de Vestígios do Silêncio”, constata Carmen Lucia Tindó Secco, ensaíasta e professora universitária brasileira, especialista em literaturas africanas.

Neste livro, conforme a descrição de Tindó, versos deambulam por “retalhos de decadências”, por um “mundo em ruínas”, por “biografias de solidões”, por imagens de abandono. São mencionados os cinemas Império e Olímpia, lugares, antes, movimentados, cheios de arte , de inúmeros frequentadores e, hoje, locais mortos, “casas desoladas à beira de um país” parado no tempo.

“Tais metáforas são reveladoras de que a liberdade se demite frente ao medo, à desesperança e ao vazio da existência”, classifica a especialista.

Nele, na interpretação da brasileira, é evidente o olhar questionador de Mucavele, direcionado aos subúrbios para denunciar um tempo de ruínas, cortes, feridas, instabilidades, receios, prisões interiores e exteriores.

Tindó entende que o poeta transmite a ideia de “um tempo sem utopias socialistas: sem foices, só de martelos, símbolos da exploração dos trabalhadores em fábricas e indústrias. Um tempo de seres que perderam suas moradas e se tornaram espectros tristes e desesperançados”.

O sentido político indissociável à arte aos olhos de um Jacques Rancière estão presentes nestes “Vestígios do Silêncio”, através de, escreve Tindó, uma “aguda mordacidade, a voz lírica reivindica para os marginalizados o direito à cidade”.

A especialista vê uma sutil crítica à falta de políticas públicas em relação aos habitantes dos bairros periféricos. Sendo que na poesia de Amosse Mucavele, o enfoque social se mescla a um lirismo existencial que envereda por trilhas filosóficas, pensando acerca da condição humana.

“Em simultâneo, um vigoroso labor estético, metapoeticamente, discute as formas de tecedura poética empregadas na elaboração dos poemas. Os vestígios do silêncio são, assim, investigados: há a acusação do silenciamento dos espaços discriminados; mas, há, também, o silêncio poético, possibilitador de outros sentidos e aromas, capazes de aprofundar os mergulhos na memória do tempo, na interioridade dos seres, na plasticidade criativa da linguagem”.

“Residência Literária”

Este lvro resulta do programa Residência Literária destinado a escritores de nacionalidade moçambicana com obra publicada, com residência oficial em Moçambique ou que se encontrem a viver, estudar e/ou trabalhar no país e que pretendam desenvolver um projecto de criação literária, coerente com o seu percurso e pertinente na proposta de relação com a cidade de Lisboa.

O programa foi criado ao abrigo do protocolo de cooperação celebrado entre a Câmara Municipal de Lisboa (CML) e o Camões – Centro Cultural Português em Maputo, de acordo com a nota de imprensa desta instituição, e o júri foi constituído por Clara Riso (Casa Fernando Pessoa, convidada), Manuel Veiga (Câmara Municipal de Lisboa) e João Pignatelli (Camões – Centro Cultural Português em Maputo).

Todo os membros do júri decidiram, por unanimidade, seleccionar a proposta de Amosse Mucavele, considerando que no universo das candidaturas admitidas em 2019 é a que melhor se enquadra na lógica do presente programa de Residência Literária.

Sobre o autor

Amosse Mucavele nasceu em 1987, em Maputo, poeta, jornalista cultural e curador da Feira do Livro de Maputo,  curador da colecção de fotografia contemporânea moçambicana na sexta edição dos Encontros Imagem & Território, na Guarda, Portugal e da Feira Internacional do Livro de Quelimane, entre outras iniciativas culturais em Moçambique, Portugal e Brasil.

É membro do Conselho Editorial da Revista Mallarmargens (Brasil), da Academia de Letras de Teófilo Otoni (Brasil) e da Internacional Writers Association (Ohio – USA), coordenador da World Poetry Movement em Moçambique. Consultor literário da Direcção dos Serviços Municipais de Bibliotecas e Arquivos, Concelho Municipal de Maputo e do projecto “Escolas que se Abraçam” da Prefeitura de Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil, Coordenou a publicação do livro “A arqueologia da palavra e a anatomia da língua – antologia poética”. É autor de 3 obras poéticas publicadas em Moçambique, Brasil e Argentina.

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