Pai não vai voltar

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Obra de Matheus Sithole

Repentinamente um estrondo toma aos transeuntes surpreendidos. Os moradores daquele perimetro da Avenida Salvador Allende, espreitam pelas janelas e os mais corajosos, descem dos prédios. Um pó ou poeira branca, sabe-se lá, domin as cercanias.

Epa, qual é a cena, pergunta o Zefas a um dos curiosos indignado por não estar mais próximo do espectáculo que o daria likes aos montes num streaming. O guarda, no centro da cena, está ocupado a tentar reanimar o Boss do terceiro andar que, por acaso estava a passar para subir para casa, quando decidiu parar para fumar um palmar azul, em frente a uma das lojas do prédio.

Estilhaços de vidro dispersos no chão, espalhados em pequenas zonas concentradas como um arquipélago com uma ilha principal. Os estilhaços, observa o chinês do primeiro andar que não sabe falar português, inglês nem xichangana,  parecem diamantes caidos da mala de um traficante de um personagem de um filme qualquer norte-americano.

O pilar da aba baixa do lado direito da enorme janala de vindro da montra da loja, o passeio e as rachaduras nalguns pontos da parte do vidro que sobrou tem desde as pontas a zonas inteiras regadas de sangue.

Boquiaberto, o Alberto, waiter num bar algures, ainda chocado por ter assistido toda a cena, comenta com quem está ao seu lado, muita gente ainda aproxima e rodeia as ceranias do embate, poxa, o embate foi violento, este vinha a alta velocidade. O choque foi violento. O que era evidente no estado de espatifamento do VW Jetta preto. E a matricula é recente, comenta outro, que fotografa, depois da live que transmitiu simultaneamente no Instagram, Facebook, YouTube, Tik Tok, WhatsApp, Telegram…Zefas não consegue avançar na multidão que se acotovela para ir mais a frente,  provavelmente para ver primeiro. Nem parece já ter passado das 20 horas.

O que direi? – questiona-se o Orlando,  guarda do prédio há mais de 15 anos – É o senhor Beny Muia, diz para sim mesmo, sem pestanejar nos olhos que já lacrimejam, sem se permitir ouvir, a boca está fechada.

A sua espera no terceiro andar, na cozinha, instantes depois de celar potinho de iogurte onde ficam a esponja e a palha de aço que usa para lavar louça. Débora, sua esposa grita a ordenar aos miúdos para diminuir o volume da Boom Box. Quer ouvir o programa de uma dessas estrelas da televisão com muitos followers no Instagram. Mal ouve a voz masculina vinda do aparelho ligado na sala. 

Isto, assim, parece uma barraca, assim só falta carne de porco e cerveja com esse vosso barulho. Baixem isso, quero ouvir o programa. Indignados, os putos estão like: não podia ter auscutadores Bluetooth, essa kota?

Abre a geleira para tirar a sopa que está na tigela do último sorvete que ele comprou. Os miúdos afinal não baixaram assim tanto a Boom Box nova que o pai comprou para, quando eles não estivessem a usar, pudesse ouvir Assa Matusse no Spotify ou Trkz, no bandcamp, já que não dá para ver performances deles ao vivo porque se mudaram para Paris.

Zefas desmaia ao ver do ventre a cabeça no capô espatifado, o cigarro que se apagou a meio entre os dedos da mão esquerda do finado. Zefas, que, na caminhada que fez no ritual habitual, respirou, no regresso, o aroma forte e marcante das acácias que perfumam as avenidas de Maputo, nas noites de inícios de Abril, perdeu toda a tranquilidade, a tensão subiu-lhe.

Nem parecia que, menos de meia hora antes, tinham trocado mensagens no WhatsApp, a combinar uns copos nas barracas do Museu antes de subirem para jantar. Zefas desmaiou. Orlando, ao ver Zefas, se estatuou de tal modo petrificado que ficou.

O filho mais novo do finado, contrariando o irmão que põe música alta e passa a noite no video game, fazia, aguardando pelo pai, aviões de papel na expectativa de superar os que o pai fazia.Ao colocar o último prato na mesa, a campainha toca. Débora vai abrir. Zefas, ao vê-la, só soluça, a tentar soletrar o nome do finado.

(Continua)

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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