Tenho memória dos textos de 2010

Na Mafalala quem tem insônia conhece a voz oscilante da mesquita, o timbre grave, picante e invocativo daquele homen devoto que madruga para chamar os crentes. Passei minha infância a ouvir esta voz. A primeira vez que deixei a Mafalala calho num bairro pouco muçulmano, mas próxima de uma das únicas mesquitas do local. A voz madrugadora recordava Mafalala, minha infância, minha mãe, meus amigos, o cheiro da areia húmida, das badjias com mais temperos que outra coisa, dos becos estreitos, dos sonhos, sentimentos.
Agora são 5 horas, acordei às 4h00. Minha expectativa era estar a redigir um texto com sentimento, mas estou aqui a partilhar memórias. Falando nelas, recordei de um texto adolescente escrito por mim em 2010:

Há dias que o sol vem com nuvens
Sentes-te só não vês o sol só vês nuvens
Há dias que o sol vem com nuvens
Não tem forças para te por em pé
Não tens forças para vencer a maré
Não tens fé
E
Vem a tristeza, não vês a beleza nos teus dias
Perdes a firmeza, vives a incerteza de melhores dias…

Já não recordo o final, escrevi num papel amarrotado, arrancado de uma agenda de um amigo que hoje descansa com à terra que transforma, genera e regenera.

Quem me dera ser poético. Queria ter colocado uma pitadinha de poesia no último parágrafo, sei que os mortos não leem, mas queria que meu melhor amigo lê-se e dissesse : “puxa Otto, teus textos têm poesia, sentimento. Me citaste de forma tão expressiva”.
Estou com gripe, não consigo sentir meu próprio cheiro, mas sei que o quarto tem o cheiro de álcool, os quatro benditos copos de vinho. Em condições normais o vinho é sinônimo de sono tranquilo, mas foi despertado pelo muçulmano.
“Estás a escrever tão mecânico”, esta voz está a perturbar meu texto, a intenção de recordar da letra sobre sol da nuvem está a perturbar meu novo texto. O passado e o presente não coabitam.

E hoje, ainda não abri a janela, queria fazê-lo, mas o bairro anda perigoso, meu pai já não senta no último desvio da rua de Goa. Pode ser a idade, o frio, a conversa, o refrigerante e o sumo, que não têm o mesmo efeito que os goles de cigarro e os maços de cerveja.
Na Katembe tenho três garrafas da Mafalala e agora descubro que o título devia ser a última frase deste texto.

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