“A Globalização – Um espinho na garganta do mundo”

Por Elton Chiziane   

Na actualidade, conhecer à nuca do mundo, não é mais privilégio de viajantes estudiosos e aventureiros comerciantes, ou capitais de grandes embarcações naviarras, ou ainda, pequena classe com tais possibilidades societais, apenas. É mérito do crescimento da árvore do mecanicismo que aos frutos da globalização se atesta. Trombamos em viagem supersónica a todos os cantos dessa esfera, mesmo que deitados na comodidade de nosso divã – pela internet, ao telefone, computador, satélite, TV, jornais e uma série de teias que nos ligam e dispersam. Ademais, viajamos em curtos ínterins por jactos, aviões, comboios, barcos, e mais outra série de veículos que romperam o hímen espaço-tempo na virgindade da realidade.

Na medida em que o mundo parece se abraçar com todos seus braços, asfixia-se pela garganta no golpe lancinante de um espinho que fere e o rasga pomposamente, como a queixar de dentro a pele branca e nua de sangue, e essa revelação ou extravasamento abre-se de dentro e cresce no íntimo uma ferida que infecciona em depressão, cansaço, medo, ócio, soledade, e enxagua com javel todo o conceito de privacidade. O pudor do mundo é prato à patena dos satanhocos que o comem cru e a mão.

Nunca antes o mundo teve tão acesso de si mesmo como hoje em dia. Acontece, portanto, uma aritmetia de fenômenos que se heterogenizam para serem digeridos pelo homem que os planta ingenuamente. O acesso a outras culturas in exactus momentum, aos modus vivendi e a todas outras formas, aparentemente antagônicas, de tecer essa borda que é o fio da vida – permitiu a sensação de comparação. E, porque viver é vontade, e isso é intrínseco ao nosso ser, por mais que se oprima, o mundo experimentou a novidade diversa na medida em que se viciava e na medida em que se apartava dela – como acontece com toda a novidade que a nós chega, uma ameaça ao nosso comodismo. E, porque viver é vontade, e isso é intrínseco ao nosso ser, o homem foi se explorando a todo o custo e virou o centro da humanidade, um tapa que a idade média não conseguiu revidar. Cresceu com isso a curiosidade e a angústia, a fome famélica de um sentido de ser que parecia estar ao longe de si, no nó do acontecimento entre os diversos modos de vida que os diversos cantos do mundo tomavam – isso parece no fim do paladar a versão falseada do helenismo que insurge ressuscitado ou sonâmbulo de morte e terror, como se a vingar-se de algo. 

Nesse exibicionismo e comércio de tradições, culturas, artes, línguas, espermatozoides, desagrega-se o pudor a moral o instinto e todo outro alicerce “errôneo” de que se assentava qualquer povoado “isolado” de um todo complexo a rachar-se pelos pilares interinos do espírito de outrora. Daí então que se afixa o espinho pela garganta do mundo e esse cresce na medida que o mundo se pequeneza e se torna um lugar pouco e pequeno de se habitar. 

É preciso reverter esse cenário, não no sentido de vomitar o espinho de onde entrou, no sentido de impugnar nele um golpe que o empurre para o fundo do estômago. O mundo precisa mastigar os seus problemas – estirando o baralho em linhas claras. 

Quando o homem passa a ser o centro do universo tudo a ele se prostra e o discrimina. Tudo quanto existe, orbita em seu diâmetro – até mesmo Deus. Se existe, é para servir ao homem. Tudo o isola numa espécie de cátedra e então o venera. Não é por acaso que é aí onde cresce ou se denuncia a solidão de tal altar e não há sacrifício ou prenda que o satisfaça – afinal tudo está ao seu dispor para o seu dispor. Isso não só o revela como coisa faminta e necessitada assim como o insatisfaz e impugna neste gesto de soco um ardor que avulta a natureza de seu espírito. Daí que a insuficiência é coisa comum, quanto muito mais hoje em dia, porque, repito – viver é vontade.

O mundo precisa cicatrizar essa ferida que o aperta o pescoço. Precisa de uma bolha de xima para engolir o espinho – como costuma-se fazer com os ossos de peixe. Já conhecemos os peitos, as vísceras e toda a vergonha que podia tapar a seda de linho. Não precisamos vestir mais essa moça. Precisamos anoitecer os olhos. Falsear o dia. Como? Oprimir a vontade. Os que parecem felizes devem deixar de o parecer. Os que parecem tristes devem deixar de o parecer. Isso é virtude. Conservai a privacidade e a discrição, educando de volta aos vossos filhos a torcer o pescoço quando virem uma mulher nua – sobretudo as mais velhas. 

Pois, a esta coisa denuncio: Não existe a felicidade! Quem disser que a tem, calai-o a boca de imediato, porque este mente. O mais possível é que ele se prende à memória da impressão de alegria que sentira e procura incessantemente por ela instante após instante e, pois eu te digo: quem tanto se mente acaba se acreditando, esquece que se mente. Ter ao dispor uma variedade de mananciais não implica que deve-se degustá-lo todo numa única refeição. Nem tampouco implica que os deva acabar sozinho. Cada um deve tirar a sua parte, na sua vez – essa é a alegria. Aceitar a realidade desse facto seria essa opressão a vontade. Não no caso da espada que impregnava dor quando na mão da infância e adolescência seculares. A mesma espada que num golpe o jovem século arrancou e no auge da sua paixão mal a usa e se apunhala a si mesmo. Na verdade, espada nenhuma bem se usa, nada do que mata bem se usa, dizer tal coisa é um absurdo no mínimo. 

Quando mais rápido o mundo despertar dessa querença voraz pela felicidade em absoluto um fenómeno prevejo acontecer. A máscara de quem encena que a tem vai cair em véu viúvo e essa vivaz angústia de não a ter vai diminuir. A garganta desinflama e o espinho diminui. Porém. É preciso aceitar que mesmo com água ou com bolha de xima, quando cai-nos para dentro do estômago, o espinho aleija. 

Não é uma religião de resignados e ociosos que sugiro. É uma cirurgia. Uma cirurgia anda de mão dada com o fio que coze. E o mundo anda embriagado de tanto beber o homem: quem já recebeu alguns pontos na pele sabe que dor isso provoca. Não há anestesia que se dilui com etanol. 

A privacidade. A discrição. O pudor. Esses são valores que precisam ser conservados. Não é o raro medicamento para essa enfermidade. É um paliativo para a dor. Para o cansaço. O desgaste. A Resignação. A depressão. Precisamos de uma nova moral. Uma moral na nova calibragem do mundo. Precisamos de xima. De xiguinha. De areia. De alguma coisa sólida que encha o estômago. 

Elton Chiziane   

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