Murmúrios do mar

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Pintura de Lizzie Ana

A pintura é outra forma de poesia, não é por acaso que o consagrado escritor Fiódor Dostoiévski, autor da célebre frase “a beleza salvará o mundo”, no romance “O idiota”, manteve, religiosamente, uma visita anual a Cappella Sistina, para contemplar a obra de Michelangelo. Noutra ocasião, no clássico “Os irmãos Karamazov”, insistiu, talvez para ser mais esclarecedor: “seguramente não podemos viver sem pão, mas também é impossível existir sem beleza.”

Passados séculos, é Lizzie Ana, nestes “Murmúrios do mar”, que nas telas reluzentes dá corpo a coisas, objectos, instrumentos, silêncios como quem rasga o papel de embrulho do belo.

A sua matéria é composta pelos nossos quotidianos que, traçados por uma artista cosmopolita, projecta um olhar que quer capturar a temperatura da cor, o perímetro da sombra, a luz impressa num reflexo como só acontece na nossa geografia.

Em contramão com a sociedade de consumo, habituada a compreender o fim da existência humana a partir da satisfação pessoal, nesta mostra somos confrontados com barcos a beira mar, vultos de pescadores ao longe.

O barco e o mar são elementos recriados e reproduzidos em inúmeras pinturas realizadas por diferentes artistas nos mais diversos estilos e momentos da Arte. Por exemplo, Géricault no romantismo e de Monet no impressionismo pintaram barcos eKatsushika Hokusai, trabalhou o mar na xilogravura.

Mas para a Lizzie o que são estes barcos e este mar? Um convite para a ilha do nenhures? Um convite ao casarão onde o sonho é real e a vida não, ansiado por Chico Buarque? Apenas barcos? Pessoas?

Pode ser regresso. Pode ser partida. Pode ser saudade. Pode ser medo. Pode ser a luta contra o mar e o vento. Pode ser perigo. Naufrágio. Pode ser salvação. Desembarque. Terra firme, as ondas a uma certa distância. A maré quase sempre serena.

Através do óleo sobre telas que cruzam fronteiras muito ténues dos estilos expressionismo, impressionismo e abstracionismo, numa linha contemporânea de busca de uma forma singular, Lizzie Ana no seu projecto Velas Silenciosas, colecção a que pertence esta exposição, nos arranca deste mundo de representações de identidades moldadas pelo poder de compra e nutrir de egos vazios. São histórias das margens.

*Texto do catálogo da exposição “Murmúrios do mar” patente na Fundação Fernando Leite Couto

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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