A invasão russa da Ucrânia e a questão da Restituição

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Altura: 39 cm Proveniência: colecção privada A. S., Portugal (grande amante dos artefactos angolanos) Comentário do avaliador: Esta figura Chokwe representa o herói Tshibinda Ilunga, um antepassado real do povo Chokwe. Segundo a lenda, Ilunga, filho de um grande chefe Luba, teria cortejado Lweji, uma chefia Lunda. Nesta tribo Lunda introduziu o conceito de realeza divina e também ensinou a arte da caça. Da sua união, ainda que indirectamente, surgiram os líderes Mwata Yam dos Lunda, a quem os Chokwe não prestaram homenagem, mas que também lhes forneceram regularmente escultores, que produziram muitos tipos de artes da corte real, até hoje. Por associação, o Chibinda Ilunga também se tornou um herói cultural e um modelo para os chefes Chokwe. A figura de Chibinda Ilunga tornou-se a representação arquetípica do chefe, que mantinha o bem-estar do seu povo e também agia como modelo para os homens da sociedade Chokwe. Esta figura está usando um capacete elaborado com elementos laterais inscritos, indicando sua posição real. Maravilhosa pátina lisa, revelando veios da madeira e corantes em algumas partes. Excelente estado de conservação apesar da idade desta peça. Envio em até 24 horas úteis. Código de rastreamento e rastreamento incluído. Com aviso de recebimento. Tags: máscara, estatueta, escultura, figura, estatueta, madeira, arte, França, Bélgica, Holanda, EUA, Dogon, contemporâneo, primeiro, primitivo, tribal, Africano, antiguidade, obra de arte, galeria, Picasso, Giacometti, galeria de arte, Arte africana, cubismo.

Parte do fundamento, pelo menos sob ponto de vista argumentativo, da invasão russa da Ucrânia é o passado, a História. O Kremlin, recorrendo ao facto da civilização russa ter emergido do Kiev Russ, e os subsequentes eventos, entre os quais, de forma simplificada e mais aproximada, a União Soviética que se instalou e faliu no século XX, sustenta, a nível interno, conforme a media ocidental, que a Ucrânia não é “bem-bem” um país. É apenas parte do seu território que por erro histórico separou-se da nação mãe.

Lida essa questão através da media ocidental, pode se assumir que Putin está a resignificar a História para benefício da sua pretenção imperialista de manter os vizinhos sob seu domínio, de modo a impor os seus ideais no que considera ser a sua esfera natural de influência.

Olhando para esse cenário, cujos contornos bélicos hoje inundam a media global, parace inevitável pensar no poder da História para a compreensão do estado actual de coisas em todo o mundo. E com isso a relevância do debate adulto rumo a solução sobre a questão da Restituição.

É certo que este debate não é novo, entretanto urgente, sobretudo na relação África-Europa e vice-versa. Os contextos de guerra e imposição de valores supostamente civilizacionais tem sido, há séculos, palco de furtos de objectos, arquivos e até de narrativas que definem os povos subjugados. Foi assim com o império romano, com o de Gaza na sequência do Mfecane – o que explica a relação conflituosa dos invasores com os VaChope – e por aí vai. E também o foi com o regime colonial.

Obviamente, isto não pode ser visto de forma unilateral, pois, nalguns casos, os invasores também se apropriaram de crenças dos invadidos. É só recordar que a instituição cristianismo tem os seus alicerces em eventos ocorridos no oriente médio e hoje é mais europeu que de outro lugar. Mas este é outro debate que não importa aqui aprofundar.

O debate sobre a Restituição, na perspectiva África-Europa, gira em torno do saque ou até mesmo compra de objectos, arquivos e narrativas numa situação desigual de poder. Na qual, a Europa colonial e esclavagista, se apropriou de artefactos africanos que ainda hoje exibe em grandes museus, como, por exemplo, Quai Branly, em Paris, e AfricaMuseum, em Tervuren que guardam, sem negociação, um acervo de 210.000 peças, ou seja, 42% do acervo africano na Europa. Acervo este que compromete a compreensão do passado dos reais e legítimos herdeiros, nós, os africanos.

O processo de desumanização do Homem negro, a luz de Achile Mbembe, passou pela anulação deste, recusando-o um passado com História. E a ausência de artefactos que testemunhem em sentido contrário apenas contribui para a eternização dessa narrativa – na acepção de um Baktin ou Foucault – falsa. Uma sequela latente, entre os países falantes da língua portuguesa, é chamar-se uns aos outros de países irmãos único e exclusivamente na base de terem sido colonizados pelo mesmo opressor. O que bem visto, pode levar a questionar, então quem é o pai? Esta questão da irmandade, não é vista em função das relações e eventos anteriores a presença invasora.

Ora vejamos, na relação com Angola, Congo, RDC e Zâmbia, Moçambique poderia olhar, por exemplo, a partir dos Chokwé, nome de um grupo que pode ser a razão da designação de um dos distritos da província de Gaza. De acordo com a Carta de Berlim Restitutions Art lab:

“a estátua de Chibinda Ilunga – um príncipe da etnia Luba, de uma região que é hoje parte da República Democrática do Congo, nos anos de 1600, casou com a rainha Lueji da etnia Lunda,- de uma região que actualmente faz parte de Angola. O casamento foi bem aceite, mas quando a rainha Lueji transferiu o seu poder para o marido, alguns Lunda não reconheceram Chibinda Ilunga como seu rei. Da separação nasceram os Chokwé, que hoje habitam em Angola, RDC, Zâmbia e Moçambique. Chibinda Ilunga é muito lembrado pelos Chokwé como real ancestral, civilizador que mudou a vida política e social daquele povo.” 

Ainda de acordo com o mesmo documento, estátuas de Chibinda Ilunga são produzidas até hoje, e o modelo é usado para a formação de novos escultores. Sendo que o exemplar que está em Berlim é, juntamente com o de Lisboa, um dos melhores exemplares e faz parte de um conjunto de objetos que, sob a iniciativa do Goethe-Institut Angola, do Museu Nacional de Antropologia de Luanda e do Museu Etnológico de Berlim, integra uma parceria que desde 2018 pretende reativar as importantes coleções de Angola nas duas cidades para o público e desenvolver pesquisa conjunta.

Neste sentido, a questão é: quantos africanos dos países supracitados têm consciência da simbologia por trás da estátua de Chibinda Ilungado com a mesma clareza de que são capazes de explicar as estátuas de Maria ou de Cristo pregado na cruz? E porquê a capacidade de explanação lúcida sobre estes objectos do cristianismo e ignorância abismal sobre Chibinda Ilunga?

Sem ignorar o historiador Amzat Boukari-Yahara, quando chama atenção para o facto de o debate sobre a restituição estar a ser visto apenas na perspectiva de património africano existente na Europa, commpreendido como tal por instituições europeias. Não se pode fazer de contas que o que saiu indevidamente e em compromisso da compreensão moderna e contemporânea do Ser africano, deve retornar para a sua origem.

Este debate que Macron trouxe a ribalta em 2018, em contramão com os pronunciamentos de Sarkozy em 2007, reacende a esperança da continuação do processo de descolonização de África que deu-se meramente a nível político. Ao nível da cultura – que nos distingue dos demais animais – ainda não aconteceu e urge.

Haverá, como tem havido desde a libertação do colonialismo, resistências. No caso de Portugal, por exemplo, se percebe que este debate incomoda, pois mexe com uma série complexa de teias como é o caso de heróis cujo legado se construiu na circunstância colonial. Seria questionar os imaculados e célebres poetas ocupantes do topo do cânone daquilo que podemos designar de portugalidade. Mas para nós, o que está em jogo é a compreensão do nosso passado com testemunhos palpáveis do mesmo.

Com a compreensão lúcida do passado, facilmente, se pode evitar a resignificação da História em benefício de um tirano que se vê como o dono da verdade absoluta. A compreensão do passado nos protege de manipulação da História. E, talvez até, nos explique, por exemplo, o conflito em Cabo Delgado.

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. E actualmente, é Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto.

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