A invasão russa da Ucrânia e a questão da Restituição

Parte do fundamento, pelo menos sob ponto de vista argumentativo, da invasão russa da Ucrânia é o passado, a História. O Kremlin, recorrendo ao facto da civilização russa ter emergido do Kiev Russ, e os subsequentes eventos, entre os quais, de forma simplificada e mais aproximada, a União Soviética que se instalou e faliu no século XX, sustenta, a nível interno, conforme a media ocidental, que a Ucrânia não é “bem-bem” um país. É apenas parte do seu território que por erro histórico separou-se da nação mãe.

Lida essa questão através da media ocidental, pode se assumir que Putin está a resignificar a História para benefício da sua pretenção imperialista de manter os vizinhos sob seu domínio, de modo a impor os seus ideais no que considera ser a sua esfera natural de influência.

Olhando para esse cenário, cujos contornos bélicos hoje inundam a media global, parace inevitável pensar no poder da História para a compreensão do estado actual de coisas em todo o mundo. E com isso a relevância do debate adulto rumo a solução sobre a questão da Restituição.

É certo que este debate não é novo, entretanto urgente, sobretudo na relação África-Europa e vice-versa. Os contextos de guerra e imposição de valores supostamente civilizacionais tem sido, há séculos, palco de furtos de objectos, arquivos e até de narrativas que definem os povos subjugados. Foi assim com o império romano, com o de Gaza na sequência do Mfecane – o que explica a relação conflituosa dos invasores com os VaChope – e por aí vai. E também o foi com o regime colonial.

Obviamente, isto não pode ser visto de forma unilateral, pois, nalguns casos, os invasores também se apropriaram de crenças dos invadidos. É só recordar que a instituição cristianismo tem os seus alicerces em eventos ocorridos no oriente médio e hoje é mais europeu que de outro lugar. Mas este é outro debate que não importa aqui aprofundar.

O debate sobre a Restituição, na perspectiva África-Europa, gira em torno do saque ou até mesmo compra de objectos, arquivos e narrativas numa situação desigual de poder. Na qual, a Europa colonial e esclavagista, se apropriou de artefactos africanos que ainda hoje exibe em grandes museus, como, por exemplo, Quai Branly, em Paris, e AfricaMuseum, em Tervuren que guardam, sem negociação, um acervo de 210.000 peças, ou seja, 42% do acervo africano na Europa. Acervo este que compromete a compreensão do passado dos reais e legítimos herdeiros, nós, os africanos.

O processo de desumanização do Homem negro, a luz de Achile Mbembe, passou pela anulação deste, recusando-o um passado com História. E a ausência de artefactos que testemunhem em sentido contrário apenas contribui para a eternização dessa narrativa – na acepção de um Baktin ou Foucault – falsa. Uma sequela latente, entre os países falantes da língua portuguesa, é chamar-se uns aos outros de países irmãos único e exclusivamente na base de terem sido colonizados pelo mesmo opressor. O que bem visto, pode levar a questionar, então quem é o pai? Esta questão da irmandade, não é vista em função das relações e eventos anteriores a presença invasora.

Ora vejamos, na relação com Angola, Congo, RDC e Zâmbia, Moçambique poderia olhar, por exemplo, a partir dos Chokwé, nome de um grupo que pode ser a razão da designação de um dos distritos da província de Gaza. De acordo com a Carta de Berlim Restitutions Art lab:

“a estátua de Chibinda Ilunga – um príncipe da etnia Luba, de uma região que é hoje parte da República Democrática do Congo, nos anos de 1600, casou com a rainha Lueji da etnia Lunda,- de uma região que actualmente faz parte de Angola. O casamento foi bem aceite, mas quando a rainha Lueji transferiu o seu poder para o marido, alguns Lunda não reconheceram Chibinda Ilunga como seu rei. Da separação nasceram os Chokwé, que hoje habitam em Angola, RDC, Zâmbia e Moçambique. Chibinda Ilunga é muito lembrado pelos Chokwé como real ancestral, civilizador que mudou a vida política e social daquele povo.” 

Ainda de acordo com o mesmo documento, estátuas de Chibinda Ilunga são produzidas até hoje, e o modelo é usado para a formação de novos escultores. Sendo que o exemplar que está em Berlim é, juntamente com o de Lisboa, um dos melhores exemplares e faz parte de um conjunto de objetos que, sob a iniciativa do Goethe-Institut Angola, do Museu Nacional de Antropologia de Luanda e do Museu Etnológico de Berlim, integra uma parceria que desde 2018 pretende reativar as importantes coleções de Angola nas duas cidades para o público e desenvolver pesquisa conjunta.

Neste sentido, a questão é: quantos africanos dos países supracitados têm consciência da simbologia por trás da estátua de Chibinda Ilungado com a mesma clareza de que são capazes de explicar as estátuas de Maria ou de Cristo pregado na cruz? E porquê a capacidade de explanação lúcida sobre estes objectos do cristianismo e ignorância abismal sobre Chibinda Ilunga?

Sem ignorar o historiador Amzat Boukari-Yahara, quando chama atenção para o facto de o debate sobre a restituição estar a ser visto apenas na perspectiva de património africano existente na Europa, commpreendido como tal por instituições europeias. Não se pode fazer de contas que o que saiu indevidamente e em compromisso da compreensão moderna e contemporânea do Ser africano, deve retornar para a sua origem.

Este debate que Macron trouxe a ribalta em 2018, em contramão com os pronunciamentos de Sarkozy em 2007, reacende a esperança da continuação do processo de descolonização de África que deu-se meramente a nível político. Ao nível da cultura – que nos distingue dos demais animais – ainda não aconteceu e urge.

Haverá, como tem havido desde a libertação do colonialismo, resistências. No caso de Portugal, por exemplo, se percebe que este debate incomoda, pois mexe com uma série complexa de teias como é o caso de heróis cujo legado se construiu na circunstância colonial. Seria questionar os imaculados e célebres poetas ocupantes do topo do cânone daquilo que podemos designar de portugalidade. Mas para nós, o que está em jogo é a compreensão do nosso passado com testemunhos palpáveis do mesmo.

Com a compreensão lúcida do passado, facilmente, se pode evitar a resignificação da História em benefício de um tirano que se vê como o dono da verdade absoluta. A compreensão do passado nos protege de manipulação da História. E, talvez até, nos explique, por exemplo, o conflito em Cabo Delgado.

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