Muenda: uma artista moldada pelo meio

Nasceu em Maputo, mas cedo conheceu o mundo. Muenda é uma mulher igual a poucas. Lançou dois livros e é artista plástica. Também é formada em arquitectura e actualmente dirige a Galeria Muenda e Associação cultural Muenda – Muend’Arte, sita na Mafalala.

Ama as artes, pois nelas encontra caminhos para expressar os diversos estados da alma, mas também praticou desporto. Ainda tocou instrumentos musicais e fala várias línguas. Trabalha focada na ideia de levar a arte para o mais próximo possível das comunidades. Através da Galeria e Associação Cultural de que é, igualmente, fundadora, Muenda também procura incentivar as crianças e jovens dos bairros periféricos de Maputo a se esquivarem dos perigos que os submundos do crime, álcool, drogas e outras perdições oferecem.

Fascinada pelas cores, Muenda pinta em telas desde a infância. Aos 3 anos, apaixonou-se pelos pincéis e produziu suas primeiras obras. “São dois quadros. Uma pintura, muito abstrata, e uma colagem do pai natal, que acredito que tenhamos feito nas vésperas do final do ano”, recorda, a detalhar que os trabalhos existem até hoje. “Estão emoldurados nas paredes da casa dos meus pais. Sempre vejo, quando por lá passo”.

De sorriso leve, Muenda acaricia os cabelos e faz girar a cadeira, por vezes sem conta. Agita-se, age como quem está diante de um espelho, nos últimos retoques antes de gravar a entrevista. A voz fina, a artista plástica gesticula constantemente. Fala sobre o percurso e os desafios, mas também dos sonhos e oportunidades possíveis de perspectivar através do horizonte que se abre pela janela  das artes.

“Não me lembro muito de como comecei, para falar a verdade. Mas, pelas histórias que os meus pais me contaram, aquelas obras já davam sinais de que estava a surgir um talento nas artes e que, a partir dali, já estava traçado que eu seria artista”, conta.

Estamos no interior da Galeria Muend’Arte. O espaço exibe paredes brancas, onde vemos penduradas várias telas assinadas por jovens artistas das novas gerações. Uma pintura de Dji Nafita, encostada ao lado da porta, dá-nos as boas-vindas. Mais para interior, encontramo-nos com os reflexos de Faira Beatriz, ladeados por trabalhos de John Tameka, Muenda, e outros nomes, num espaço onde também encontramos esculturas e outras pinturas. Frente a frente, no espaço que serviu de residência para a concepção da mostra “Re-imaginar Maputo”, Muenda assume-se como uma artista de várias facetas.“Sempre gostei de desenhar e de pintar, mas trabalho até onde as minhas capacidades permitem”, sublinha.

Foto: Ildefonso Colaço

VIAGENS

Alemanha: o ponto de partida

O percurso de Muenda está distribuído um pouco por toda a parte. Sempre foi uma artista de vários destinos e conhecedora de diferentes realidades. Os seus trabalhos não só são o reflexo das impressões que foi colhendo a cada experiência, mas também traduzem o seu pensamento sobre o mundo.  

Tudo começou quando tinha, apenas, 8 meses de vida, altura em que o seu pai teve que rumar à Alemanha, em missão de serviço. “Fomos todos nós, à Alemanha. O meio permitiu-me interagir com a arte muito cedo e fui explorando as possibilidades” Viveu em terras germânicas pelos quatro anos que se seguiram. Durante o período, frequentou escolinhas e jardins de infância, onde às crianças é ensinada a arte como um valor.

“Acho que eu tinha as artes como a minha melhor aula e percebi que era a minha inclinação. Acredito que a infância seja a melhor altura para se explorar a parte criativa de um ser humano, porque há crianças que têm talento e que querem, de verdade, fazer arte”, sublinha.  

De volta à Maputo, Muenda teve que se adaptar à “nova” realidade. “Quando voltei, aos meus quatro anos, ainda estava em fase de ir à escolinha. Mas, cá, não encontrei as artes plásticas, como na Alemanha. Tinha mais danças, que também fui fazendo, e, como era nova, acabei esquecendo o que aprendia, apesar de que nunca deixei de praticar”, conta.

Na altura (2000/1), continua a artista, não tínhamos Internet, como agora. “As crianças de agora têm plataformas (como o Youtube) que ajudam quando querem aprender alguma coisa. Nós não tínhamos isso. Então, eu desenhava até onde podia”.

Permaneceu em Maputo pelo resto da infância. Concluiu os primeiros níveis de ensino, sempre a a residir no sonho de se tornar numa artista profissional. “Nunca parei de desenhar. Quando entrei para a Secundária, tive que decidir o que eu queria fazer”, recorda, a detalhar que não foi uma decisão fácil. “Fui partilhando com os meus pais os cursos que eu desejava seguir. Tinha tudo a ver com arte. Ou artes plásticas, fashion design…alguma coisa que me permitisse desenhar. Eles (os meus pais) disseram-me que eu devia querer um curso mais técnico e bem definido, porque as artes são muito subjectivas”.

Apesar da reacção dos pais, Muenda não cruzou os braços. Persistiu, até encontrar um campo que cruzasse a paixão pelas artes e as exigências dos progenitores.“Vi que tinha arquitectura. Não eram as artes visuais, mas eu podia desenhar, ver e tactear um edifício. Decidi seguir o curso e eles aceitaram.”

Foto: Ildefonso Colaço

O Quénia e a volta às artes visuais

Já a entrar para o pré-universitário, Muenda estava certa sobre a profissão que queria seguir. Entretanto, um novo destino veio mudar as certezas. Chegou ao Quénia para dar continuidade à trajectória que seguia os trilhos da arquitectura, mas, naquele país da África Oriental, a artista se deparou com novas possibilidades.   

“Eu já me tinha esquecido das artes visuais”, esclarece e justifica “estava focada na Arquitectura, mas, quando cheguei a 11a, tive que estudar no Quénia. Lá, eles não tinham desenho técnico (como aqui), mas artes visuais”

Sem escolhas, Muenda teve que optar pelas artes visuais e, assim, reactivar uma paixão antiga. “Fiquei irritada, porque as artes visuais iriam-me desviar da arquitectura, mas, como sempre gostei de desenhar, comecei a pintar em telas grandes”, aponta e acrescenta que voltou a praticar as artes visuais com mais vigor. “Aquela minha paixão voltou com mais gana e mais ciência. Comecei a aprender a parte científica das artes visuais e isso foi muito bom”.  

No Quénia, Muenda aprendeu mais sobre técnicas de pintura e se profissionalizou. “Quando eu estava no Quénia, por incrível que pareça, não tive referências.”avança, a recordar que “O meu professor incentivava-nos a encontrar o nosso próprio traço, através das obras dele e de outros alunos que passaram por ele. Nunca fez questão de nos mandar explorar outros artistas”.

Nas mãos do professor, Muenda expandiu os horizontes. Concluiu o ensino médio e regressou à Maputo preparada para mostrar-se ao mundo. Produziu mais quadros e expôs, pela primeira vez, em 2015. Intitulada “Além da Realidade”, a mostra esteve aberta na Mediateca.

Trata-se de um trabalho com que a artista materializa o seu olhar sobre o mundo a partir de aspectos subtis, mas presentes em diversas realidades. “Foi um momento de revelação. Mas uma revelação mesmo para mim, porque eu não tinha em mente que seria capaz de expôr”, desabafa e diz mais “fiquei feliz, foi uma emoção viver aquilo, ver a sala cheia e as pessoas a elogiarem o traço”. 

Ralação com as letras

Capa da segunda obra literária de Muenda

Além de pintar e desenhar, Muenda é escritora. Tem duas obras publicadas. “Maravilhas da Alma” (2013) e “Alma Inquieta” (2015), ambas de poesia. “Comecei a escrever as “Maravilhas da Alma” cá, em Maputo, antes de ir ao Quénia”.

Se, através da pintura, Muenda viaja para dentro dela mesma, na busca por um mundo ideal, com as letras ela procura vestir a capa de outros sujeitos. “Antes eu escrevia e depois deitava os papéis, até que decidi passar a registar num caderno”, conta, a narrar a experiência de declamar, pela primeira vez, um texto da sua autoria.

“Aos 11 ou 12 anos, declamei um poema no serviço do meu pai. Chama-se “A Minha Infância” e escrevi alusivo ao 1 de Junho. A partir dali fui escrevendo e guardando os meus textos”.

Começou a escrever em Maputo, mas foi no Quénia onde se aperfeiçoou. A par da língua inglesa, aprendeu sobre literatura e passou a escrever com mais ímpeto. “No nosso caso, se tivéssemos Literatura e Português, haveríamos de saber sobre os livros da Paulina, do Mia… Haveríamos de saber sobre os nossos escritores desde tenra idade”.

Melhorou os poemas e sonhou ainda mais alto. Tencionava publicar um romance, mas optou por dar aso aos dizeres da alma. Lançou as “Maravilhas da Alma”, em 2013, e seguiu escrevendo sobre a voz interior. Dois anos depois (2015), nascia a “Alma Inquieta”, um exercício de manifestação das dores e feridas da alma.

Publicar livros não foi tarefa fácil. Muenda recorda do drama que viveu para tirar a segunda obra. “As editoras não apostam nos novatos. E este é um problema que ainda existe, mas está a baixar. Lembro-me que os meus pais criaram uma corrente na família e conseguimos lançar o livro”. 

Não foi difícil escrever, explica.” Eu usava a escrita para desabafar e era algo de que eu gostava”.

Mais um reencontro

Em cada voo, Muenda desembocava num destino. Conheceu várias realidades e colheu experiências que moldaram os seus sonhos e ditaram a sua trajectória. Depois da exposição e dos lançamentos, afastou-se das artes para dar lugar à formação superior.Mais uma vez, teve que viajar.

“Fui fazer a faculdade na Inglaterra. Voltei para a Arquitectura, depois de tudo”, justifica, a contar que a ideia era abandonar as artes e seguir carreira profissional. “Voltei a ficar na dúvida entre Arquitectura e Artes Visuais, para a faculdade, mas fiz a minha escolha e vi que não tinha como casar as duas áreas, porque ambas precisavam de muita concentração”.

Esteve longe das tintas, mas não as abandonou. A paixão pela cor sempre lhe correu nas veias. Quando voltou à casa (Maputo), em 2019, deparou-se com pessoas que apreciavam suas obras e que a aconselharam a continuar a produzir arte. Então, como forma de se reconectar com as artes, decidiu abrir uma associação.

“A melhor forma que vi de voltar às artes foi criando uma associação. Juntar artistas e formar um grupo reconhecido, que possibilite a abertura de portas”, conta. 

À pão e água, abriu a Muend’Art e abraçou novas metas. “Conseguimos o espaço, que foi dado pela Igreja Santa Ana da Munhuana, e assim foi acontecendo. Juntamos artistas, jornalistas e outros profissionais de diferentes áreas para elucidar as pessoas sobre os valores da arte”  

Um outro objectivo da Muend’Art é introduzir as crianças, adolescentes e jovens às artes. “É, mesmo, também, para cobrir a lacuna que existe no nosso sistema de ensino.”, defende e acrescenta “se esses adolescentes chegam, por exemplo, aos 18 anos e não tiveram contacto com as artes, aos 20 anos eles já têm outras ideias em mente. Estão encaminhados a outras áreas…” 

Desta maneira, a Muend’Art organiza, anualmente, um momento de celebração e partilha de arte produzida por artistas de palmo e meio. O propósito é mostrar às crianças, aos pais e à sociedade, em geral, o que se pode produzir graças à criatividade.

“Tivemos um workshop de teatro, onde descobrimos que temos várias promessas. É uma questão de pegar a eles e ajudá-los a explorar as habilidades”, refere e conclui que “temos gostado do produto final”.

Esta matéria está integrada no Diversidade, produzido pela plataforma Mbenga Artes e Reflexões, conta com o apoio DIVERSIDADE, um instrumento de financiamento do PROCULTURA PALOP-TL – Promoção do Emprego nas Atividades Geradoras de Rendimento no Setor Cultural nos PALOP e Timor-Leste, financiado pela União Europeia, cofinanciado e gerido pelo Camões, I.P., em parceria com a rede de Institutos Culturais Europeus (EUNIC).

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top