As Circunstâncias do Trágico: uma leitura de Calvário e a Cruz de J. Mocumbe

Por Harani MAHALAMBE*

Proposição I

A relação do artista coma palavra [é] uma relação secundária, funcional, condicionada por uma relação primária com o conteúdo, ou seja, com o dado imediato da vida, em sua tensão ético-cognitiva. O artista utiliza a palavra para trabalhar o mundo, e para tanto a palavra deve ser superada de forma imanente, para tornar-se expressão do mundo dos outros e expressão da relação de um autor com esse mundo.

MIKHAIL BAKHTIN, 1997ː208

Proposição II

(…) O juízo de valor sobre uma obra depende de sua estrutura. Mas (…) ela não é factor único do juízo. (…) O valor é interno à obra, mas ele só aparece no momento em que a obra é interrogada por um leitor. A leitura é não somente um acto de manifestação da obra, mas também um processo de valorização.

Tzvetan TODOROV, 1970ː123

Começo por Hermenegildo Bastos – uma mente de luxo que todos devem conhecer – ao pensar na Literatura como Trabalho de Apropriação, para o qual o prazer que nos transmite a arte surge da compreensão de que um mundo outro é possível – o da liberdade. Enquanto o mundo da liberdade não existe, a arte é um consolo, um substituto, um sintoma ou talvez uma recusa.

Aliás, Peter Burger – aquele através do qual ganhei o fascínio de esboçar uma crítica que não se prende unicamente no valor estético ou formal de uma obra de arte, só porque ela nasce incontestavelmente de um confronto entre o escritor e a sua sociedade – avalia o problema da autonomia da arte na sociedade burguesa a partir de uma díade proposicional de Theodor W. Adorno em Teoria crítica (1979) e Ensaio sobre Wagner (1963), do qual se pode inferir que na literatura moderna, a autonomia é a maneira pela qual se estabelecem os liames entre literatura e a sociedade. 

É possível pensar o homem fora do seu tempo e do habitat social? E a arte enquanto um subproduto que emana não só da mentalidade dos autores, como também das circunstâncias, é possível pensá-la isoladamente? Ortega y Gasset, aquele que o devemos o conceito de «circunstância», na percepção do seu estudioso Kujawsky, olha-a como «o nervo criador do pensamento filosófico». E ele próprio Gasset, «o homem é um devedor do seu tempo e do seu espaço». Teria sido aqui, talvez, onde Bakhtin dobrou o conceito de «Cronotopo» como aquela categoria «artístico-literária onde ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto» para forjar o sentido d´uma obra de arte. E Edmund Husserl chama de mundo de vida – a esse pedestal sobre o qual os pés do artista se devem sobrepor.

É neste circuito onde se instaura o meu maior gosto e encanto de ler Calvário e a cruz Antologia híbrida de Jeconias Mocumbe, dividido em três cadernos nomeadamente (i) o humano sob a mascara, (ii) caderno de premonições e (iii) geografia da folha híbrida. Neste exercício artístico, a conjugação conseguida do belo estético e do dado social constitui o leitmotiv do qual o autor se apoia para ilustrar a preocupação que nutre com os assuntos que aferidam o seu tempo e o seu mundo partilhado colocando-os, por vezes na superfície, por vezes na entrelinha, num cruzamento entre o trágico e o idílico. 

Ao ler-se o primeiro caderno (o humano sob a mascara), que por sinal é o mais longo e mais produtivo em termos conteudísticos e técnico compositivos – que servirá de veia principal para as nossas análises – é possível captar as influências que a escrita de Jeconias Mocumbe sofreu dos factores sociais, num país em que o trágico se tornou quotidiano, nomeadamente, 

a guerra de desestabilização

Papá, ontem o teu filho esteve aqui, ali, acolá, e nesta madrugada mudou de posição, amanhã emboscará o adversário num outro itinerário. E se o batalhão recuar, houve sangue a baptizar os campos. As balas cantam no milheiral. Encolha a tua enxada papá. E nunca mais volte a machamba por estes dias. Fuja. Nós não matamos inimigo em Cabo Delgado. Matamo-nos a nós papá. E nessa doença venérea atacou também uma Renamo da esquerda em Sofala que se diz existir por lá.Mocumbe (2021, p. 21)

afome que instaura a mendicidade

Vale tanto ouro a desolação do poema que se quer quebrar com a língua, e se, ao menos um verso, uma poesia, uma melodia, uma prosa matasse a fome dos mendigos, talvez eu seria esse herói de causas. (Ibid., p. 31)

e a pandemia viral da Covid-19

O dissabor da saudade irradia, mas os pés, inda molestam os grãos rubros fios de areia, tingidos da música triste dos pombos. Anzóis aos queixumes do Sol, laringe a aspergir o soro da gripe, lágrimas que chovem em espiral e mapeiam a estiagem. E neste absinto que poiso o grito, entala-se a voz moribunda no estrondo e nos estalidos dos alfinetes. (ibid., p. 17)

E neste ofício de dobrar os signos como uma mãe que se curva nos ângulos das apas, J. Mocumbe partilha as mesmas sensações com os seus homólogos poetas, como nos adverte Jean-Paul Sartre citado por D. Bahule (2022) segundo o qual «também não há dúvida que as artes de uma mesma época se influenciem mutuamente e são condicionadas pelos mesmos factores sociais». Pelo que, as incertezas do presente e do devir, associadas ao sonho que se aglutina na esperança em Mocumbe – como se alude nos excertos seguintes «o teu filho está bem. Porém, não dobre a lágrima, pois, nela escorre o barco de papel da esperança» (p. 21); «nunca se sabe quando, mas a gente volta a se compor um abraço eterno numa vila, avenida, rua, estrada qualquer para reciclar os segredos que a distância nos privou de contar» (p. 38) – em Jaime Munguambe, um outro génio da nossa geração, estes traços são deixados na entrelinhaː

As aulas dos dedos na pátria de sangue/são a outra geografia por surgir,/ na moradia do corpo/o espírito semeia no céu uma revelação,/saímos ´pela outra porta da solidão,/percorremos as milhas do destino,/nos degraus do fogo há uma vela acesa,/a prostituir-se numa estátua em movimento (Munguambe, 2015, p. 63)

Neste absinto de palavras e versos de aversão e onirocricia, o sentimento de regresso a casa como aquele lugar de pertença e de demora; lugar de liberdade e de devolução da tranquilidade depois do esquartejamento circunstancial, operado numa linha estreita dialogante com Os ângulos da casa da poetisa Hirondina Joshua, decorre um pensamento de cepticismo em relação a divindade. Aqui, Jeconias Mocumbe traduz um sentimento genérico da gente da sua terra, que assolada pelas circunstâncias acima arroladas e principalmente pela pandemia viral da Covid-19, associadas as falsas profecias religiosas atinentes ao seu fim, instaura-se o retorno à decadência imagética metafísica e reiterado do poder divino ao que se aproxima daquilo que Nietzsche diz sobre a morte de Deus ao descer da montanha e deparar-se com a cega credulidade dos homens. Tal assombro e cepticismo justificam-se no excerto seguinte

Agora rezo a ela [a vida] como um Deus que não o conheço, não apalpo, não sinto. Dogmático. E terrorista. No outro plano. Nem inferno, nem paraíso me esperam. (…). Diga-me como é que é a máquina opressora por lá. Pois do pouco que sei, no além, existe apenas o indizível, Mocumbe (2021, p. 36)

Este excerto constitui o corolário das três leituras temáticas que podem ser impressas no primeiro caderno, que ao olhar para a vida dos nossos tempos como um lugar que se opera o lento suicídio de todos, a imagem de Deus aparece-nos desacreditada. Retomemos J. P. Sartre com o condicionamento dos factores sociais para a edificação poética e, para acrescentar, com o niilismo existencialista. As guerras corriqueiras que assolam o mundo; a violência física quotidianizada; a ciência bélica e tragibiológica que atentam a existência humana; a carência de um pouco de tudo e outras coisas, não só condicionam o exercício poético, como também instauram um pensamento céptico ou niilista perante aquele que nos foi dado a crer antropologicamente como o Ser criador e provedor do bem-estar dos homens. 

Contudo, há que hastear o valor literário da ironia que se capta nos versos de Mocumbe; essa ironia de precariedade que se situa numa tónica anti-ideológica e anti-dogmática « [Deus] dogmático. E terrorista. No outro plano. Nem inferno, nem paraíso me esperam.», além de expressar uma fria desmistificação dos arquétipos da tradição, denuncia paralelamente as fragilidades da máquina governamental dos homens « Diga-me como é que é a máquina opressora por lá.»

Assim, a leitura de Calvário e a Cruz – Antologia Hibrida de J. Mocumbe, permite-nos observar com maior rigor as feridas que acometem o mundo que nos rodeia; permite-nos ainda também, voltarmos ao nosso mais íntimo do ser e da cogitação para pensarmos, repensarmos e refletirmos sobre o mundo que pretendemos construir, enquanto garantes da justiça, da paz e do bem-estar social. A arte, ainda que se posicione na superestrutura, rebelar-se-á sempre contra qualquer manifestação que atenta o bem da humanidade.

Quero terminar convocando aos fazedores e aspirantes da arte para que se lembrem que a arte não se assemelha à uma atividade de garimpeiro onde bastam simplesmente a vontade e a forçade escavar e o sonho de enriquecer. Há aqui apenas dois meios, (i) volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobre tudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? (ii) se a sua resposta for afirmativa, precisa ter paixão e amor com as palavras. Depois fazer da palavra seu habitat; seu único lugar de reconciliação e de criação, mas para tal, a pessoa tem de ter gosto especial pelas palavras. […] tem de querer enrolar-se nelas. Tem de ler milhões delas escritas por outras pessoas (…) [só assim começa] a conhecer-se a si próprio tão bem como a conhecer as outras pessoas. São receitas obrigatórias que herdamos de duas mentes com esplendor, (i) Rainer Maria Rilke em Cartas a um Jovem Poeta, e (ii) John D. Mac Donald na introdução d’ O Turno da Noite de Stephen King, desenvolvida por D. Bahule em Tabuleiro Semiótico [OU] O Cálculo da Raiz Quadrada.

Referências bibliográficas 

Bahule, D. (2022). Tabuleiro semiótico [OU] O cálculo da raiz quadrada. Maputo: TPC. 

Bakhtin, M. (1997). Estética da criação verbal (2ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.

Burger, P. (1993). Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, Limitada.

Mocumbe, J. (2021). Calvário e a cruz: antologia hibrida. Inhambane: Massinhane edições.

Munguambe, J. (2015). As idades do vento. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto. 

Okapi, S. (2018). Os poros da concha. Maputo: Cavalo do Mar edições.

Rilke, R. M. (2006). Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L&PM.

Todorov, T. (1970). Estruturalismo e poética. São Paulo: Editora Cultrix.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top