Insinuações e dúvidas

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Apesar do filósofo norte-americano da estética Morris Weitz ter defendido tratar-se de um erro lógico procurar a essência da arte, o que se reforça com as dúvidas que Saranga (n.1974) nos impõe através das suas insinuações, aventuro-me a percorrer estas incertezas, na esperança de, entre os labirintos da criação deste artista, encontrar um eventual, ainda que temporário, indício do que vem a ser estas “Cartas do Norte e Relatos do interior”.

No imediato, a palavra “Carta” pode sugerir um tempo antigo. Um tempo de demora, de espera, em que a palavra ainda activava a magia de uma presença ausente, mas tão presente na caligrafia de quem a escreveu.

A opção, por um lado, pelo preto e branco nos desenhos que o artista fez de propósito para esta exposição alimentam esta suposição do passado. Por outro, através de um traço que remete aos padrões das tatuagens dos rostos das mulheres Makonde, o negro escuro das aguarelas que sugerem o pau preto das esculturas o artista nos conduz aos ventos frios que nos chegam do Norte.

Nas pinturas, Saranga realiza uma perfeita performance de cores que são muito nossas, privilégio que o sol parece só dar luz na nossa geografia. Optando por um verde e um azul de transparências e luminosidade que lhe são únicos, peculiaridades de África se revelam.

Saranga, nas suas obras, faz insinuações e esconde (?) as figuras com desenhos disformes e sobrepostos por outras camadas. Satiriza o espectáculo da sociedade usando um trocadilho de cores, expressando o seu pensamento nas telas, como se fossem as frases do pensador francês Guy Debord: “As paixões já foram suficientemente interpretadas; o objetivo agora é descobrir novas paixões”.

No seu abstracto, insinua-se uma ideia pintada sobre o xadrez que se chama realidade, explorando diferenças e semelhanças nos personagens em castanho e amarelo que mais parecem o pôr do sol visto do centro urbano, noutras a cor da terra e de ferrugem, que constituíram a base da reflexão e inovação de Saranga. Nesta primeira exposição individual numa galeria moçambicana, pelas opções de discurso – pensando a imagem como tal –, técnica, universo pictorial, reafirma que, como escreveu Iba N´Diaye: “não tenho desejo de estar na moda”.

*Texto do catálogo da exposição “Cartas do Norte e Relatos do interior”, patente na Fundação Fernando Leite Couto até 05 de Novembro

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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