Conto de António Manna

Textos de António Manna

DIMENSÕES DIFERENTES

Um suspiro sem fundo e a permanência implacável daquele velho conhecido aperto na boca do estômago. Com a alma em frangalhos, a decepção acumulada ao longo de tortuosos meses, a sua lúcida incapacidade de entender o que a vida nos serve sem o termos pedido, é espremida até à última gota. A dada altura a revolta é tal que nem as lágrimas não contidas que lhe rolam pelas faces trazem alívio ou sequer percebe no ar qualquer resquício de redenção. É aí que lhe começa a faltar o ar, o dia de sol radiante sufoca, o homem está enclausurado no meio de máscaras de sorrisos cínicos feitos da mais refinada desfaçatez. Esgotado por permanecer neste longo calvário cara a cara com uma incompreensível ausência total de carácter é acometido por uma espécie de claustrofobia da alma e sai para a rua para respirar…

Profundamente triste e sob uma temperatura de 35 graus, desce a arborizada Rua Domingos Sequeira em direção ao jardim da Estrela. O seu destino é o rio, talvez a carícia da aragem na beira do rio sossegue um pouco este coração amassado, ferido. No fundo da rua abre-se o espaço e a Basílica imponente ergue-se sobre o centenário e frondoso Jardim da Estrela. Como que guiado por qualquer coisa de superior, na expiação de algum pecado, no pedido de ajuda in extremis, sem pensar vê-se a entrar para a imensidão silenciosa da majestosa Basílica. Turistas cruzam-se pelo corredor, outros ficam parados a apreciar a grandeza desta igreja. Tem uma cúpula extraordinária que ilumina o altar e as duas capelas laterais. Percorre a igreja em todo o comprimento e vai sentar-se na primeira fila defronte do altar. Aqui poderá se entregar em silêncio à busca de um qualquer possível lenitivo que este lugar da mais perfeita paz possa ofertar-lhe. Olha para a imensa cúpula iluminada por uma luz filtrada e fecha os olhos. Os espectros luminosos inundam os seus olhos enquanto ele roga para que algo aconteça, algum sinal, algo transcendental. Nada acontece e volta a abrir os olhos e é nesse momento que na capela do seu lado direito se ouve abrir uma porta. O desencantado vira-se nessa direção e do interior secreto da Basílica, talvez duma sacristia vê sair pela porta um jovem de óculos, vestido discretamente e com umas sandálias de couro. Fica a observar o jovem que após caminhar uns metros se senta num banco a pouca distância donde o entristecido se encontra. Chama-lhe a atenção o facto de o jovem ser negro e apercebe-se que um grupo de turistas está parado a olhar para o jovem. Fecha os olhos e começa a encher os pulmões lentamente e depois a expirar. Um ensinamento adquirido na sua curiosidade pela filosofia budista. Com os olhos fechados inspira e expira. Está neste exercício há alguns segundos quando sente um toque no ombro. Abre os olhos e deparasse com o jovem à sua frente. Pausadamente e baixinho o jovem diz:
– Peço desculpa, mas vou ter de fechar a igreja. – O inconsolável triste ficou sem chão. Falou assim para os seus botões:
– O bálsamo não será aqui que vou encontrar. O deus que reina nesta igreja não está para as minhas lamúrias. Ele tem razão, o que são os meus ais comparados com a dor?

Pintura de João Timane
Pintura de João Timane

Já no exterior da Basílica, regressa à caminhada e começa a descer a íngreme Calçada da Estrela. Cruza com um eléctrico cheio de turistas de máscara, que surpreendentemente sobe rápido e silenciosamente. Passa ao lado do Palácio de S. Bento e curva à direita em direção ao rio. Lembra-se que está próximo da Rua do Poço dos Negros, altera o trajecto e entra por ela a subir. Vai na busca de uma ruela transversal denominada Travessa do Poço dos Negros. Terminou há algum tempo um romance que o obrigou a um estudo sobre esta rua e correspondente travessa. No tempo dos navios negreiros este bairro tinha uma significativa população de escravos alforriados. Foi subindo e espreitando os nomes das travessas. Uma chama-lhe a atenção, a Travessa do Carrasco. Tudo a condizer. Mais acima e por fim a Travessa que procurava. Estreita e ladeada de edifícios altos é sombria.

Para seu espanto e a meio da viela vê um negro possante de tronco nu a trabalhar na rua. Na frontaria do edifício onde se encontra, vêm-se penduradas nas janelas e portas, batinas brancas típicas do Norte de África. Dá-se um encantamento. Faz-se luz e o angustiado vive um delicioso dejá vu. Regressa por instantes às páginas do seu romance onde ficcionara a vida neste bairro no tempo da escravatura. Disfarçadamente faz umas fotos do homem negro na viela. Continua a subir a Rua do Poço dos Negros em direcção ao término da rua. A rua termina numa bifurcação. O triângulo por onde as ruas começam a desaguar, no tempo da escravatura tinha um tronco ou mesmo uma cruz de madeira. Era onde açoitavam os escravos que se rebelavam ou quando simplesmente achassem uma razão para açoitá-los. Aqui o entristecido, mas mais animado, encontra um jovem negro na paragem do eléctrico e não resiste. Aborda-o com delicadeza e um sorriso nos lábios e pergunta-lhe se sabe o nome daquela rua. O jovem responde que sim e que até vive a umas dezenas de metros mais abaixo ou seja, possivelmente na Travessa do Poço dos Negros. Com outro olhar o mesmo homem que tinha entrado na Basílica à procura de algum sinal, sentado na paragem ao lado deste jovem, desenrola toda a história que conhecia da sua investigação sobre os negros e escravos em Lisboa. O jovem está fascinado e resoluto levanta-se, pois, o eléctrico está a chegar. Diz o seu nome e pergunta o do muito mais animado entristecido. Antes de subir para o eléctrico diz em modo de promessa que quando voltar para casa e em conjunto com os filhos vai pesquisar e decifrar a coincidência de estar a viver num lugar de memórias que não se devem deixar apagar. Há necessidade de se fazer o exercício do mea culpa e de se assumir o passado tenebroso da escravatura em Lisboa. Só assim se poderá um dia curar esta ferida aberta e desgastada do racismo, que teima ao longo destes séculos e até ao presente em se metamorfosear nas mais diversas formas de dor e sofrimento. O agora já não tão sufocado, mais leve da alma, continuou o seu caminho e mais tranquilo sentiu um ensejo artístico e fotografou o eléctrico a passar ao lado da Igreja de São Paulo. Praticamente chegara ao Cais Sodré e já se adivinhava a frescura do rio.

***

António Francisco da Poça Manna, 65 anos de idade, natural de Maputo e com residência alternada em Vilankulo e em Lisboa. Autodidata e apaixonado pelo belo, teve desde sempre uma ligação profunda com as artes, sendo os livros e a música a paixão maior e incondicional.
Na década de 90 publicou alguns textos no Savana com o pseudónimo de António F.
Em 1999 criou um espaço cultural e de promoção de arte na baixa de Maputo, na Rua de Bagamoyo, que se chamava Artebar.
Recebeu uma menção honrosa na 1ª edição do Prémio Eugénio Lisboa com o livro “Bebi do Zambeze” composto por quatro contos escritos nos anos 80.
Publicou na Amazon um romance intitulado “A rola elegante e os azuis diáfanos” e um livro de poesia intitulado “43 poemas noturnos”.

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