Sina de Aruanda: A Vaca Leiteira de Virgília Ferrão

Escrito por Léo Cote

Sina de Aruanda é um momento importante não apenas para a autora mas, sobretudo, para a sua carreira literária. Tal afirmação dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais a pessoa empírica que nos interessa e sim o seu percurso, ou como evolui o sujeito ordenador do mundo de papel, seus ciclos e picos de metamorfose. O indivíduo e os seus discursos, velhos partidários da análise e do debate fácil e pueril, são substituídos. O aparato da análise tem que se ater, agora, a esta realidade.

Pura informação retórica, repelida pela prática analítica? Seria superficialidade afirmá-lo. A verdade é que analisar, actualmente, não é apenas delucidar a estrutura da obra. Entretanto, os princípios dos formalistas russos não permaneceram como uma piedosa intenção. Por toda a história moderna dos estudos literários, é possível seguir-lhes os efeitos. Sem dúvida, a definição da literatura, seus géneros e subgéneros, as margens de caracterização, o que era analisado de facto e o que hoje nos é permitido analisar – tudo isso modificou-se amplamente nos últimos cinquenta anos. Afinal, muitas obras literárias perderam relevância e outras passaram a tê-la, uma vez que estavam ligadas a um certo cânone ou a um tipo de mercado; o objecto paraliterário, aquilo a que se refere a prática analítica, foi profundamente modificado: a qualidade, a natureza, a substância, de algum modo, de que se constitui o elemento (para)literário, mais do que a própria definição formal. Assim, a obra é analisada pela economia interna de sua engrenagem.

Se o espírito da obra literária, a atmosfera que a anima, etc., é invocada na análise para explicar a sua qualidade e introduzi-la como um elemento de delucidação do seu valor; se ela é invocada com tanta ênfase, é para interpretá-la, ao mesmo tempo que a qualidade, e fazê-la participar do seu valor. Em todo o jogo literário, desde manifestações mais recuadas até a fenómenos mais recentes, se vê a intrusão, incorporação, etc., de um campo de objectos que vêm duplicar, mas também dissociar os objectos literariamente definidos e codificados, criando um campo de distorções ou de múltiplos espelhos. Eis, porém, que durante a leitura de Sina de Aruanda nos fomos colocando questões bem diferentes da verosimilhança. Não mais simplesmente: “A obra é verosímil?”; mas também: “O que é realmente esse fenómeno, o que significa esse elemento no jogo ficcional ou estético? Em que nível ou em que campo do jogo ficcional deverá ser colocado? Como evolui o sujeito ordenador do mundo de papel?”; não mais simplesmente: “Quem é o autor(a)?”; mas: “Que elementos e relações nos permitem ler adequadamente a obra? Como prever a evolução desta? De que modo será ela mais seguramente interpretada?”; todo um conjunto de questões que se precipitavam e insistiam a ter lugar neste campo crítico. Mas está aí o ponto de partida de uma evolução que a leitura/interpretação e a própria obra vão desencadear durante as páginas seguintes deste texto. Assim, a obra não funciona mais sozinha. Até porque a estruturação da obra se faz de elementos e relações extraliterárias. Pode-se dizer que não há nisso nada de extraordinário, afinal, a literatura sempre viveu disso, que é a natureza do destino da obra de arte absorver pouco a pouco elementos e relações que lhe são estranhos. Fazendo-os, assim, funcionar no interior da operação estético-literária própria da obra. Mesmo porque a literatura funciona e se justifica, em parte, por essa perpétua referência a outra coisa que não é ela mesma, por essa incessante reinscrição nos sistemas não-literários. Como diria Foucault (1999: 23), “Ela está votada a essa requalificação do saber”. Uma vez que gera um deslocamento do regime de verdade.

O saber da obra de arte não é exactamente a ciência de seu funcionamento, e o efeito do seu desdobramento é mais que a capacidade de pô-lo em jogo, é o que podemos chamar de tecnologia estético-literária da obra, sendo raramente projectada em discursos contínuos e sistemáticos; compondo-se de elementos e relações nem sempre fáceis de decifrar.

Ora, o estudo desta obra supõe que o efeito de real nela encenada não seja concebido apenas como uma propriedade, sendo igualmente uma estratégia, que seus efeitos de encantamento não sejam atribuídos a verosimilhança, mas a disposições, a manobras, a tácticas, a funcionamentos; que se desvende nela antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em actividade. O que quer dizer que essas relações se aprofundam dentro da obra de arte, se articulando de acordo com toda uma série de complexas engrenagens e através de processos como a analogia ou a homologia. Em compensação, nenhum de seus episódios localizados pode ser inscrito na obra senão pelos efeitos por eles induzidos em toda a coroa gravitacional da obra, ou em seus ciclos de metamorfose. Isto é, o efeito de real ou a verosimilhança, temos que admiti-lo, produz saber (e não simplesmente fornecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que efeito de real e saber estão directamente implicados; que não há efeito de real sem constituição correlata de um campo de saber.

Em Sina de Aruanda, o que está em jogo antes da história é o sujeito e o corpo, o corpo no seu duplo significado enquanto elemento transitório que nasce e morre e um outro que permanece através do tempo e se mantém como fundamento físico e intangível. Daí, aqui, não se poder dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas sim uma existência, uma realidade, que se consubstancia através da reincarnação, ou “sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência”, como aponta Foucault (1999: 28) em outro lugar, fazendo lembrar o caso da mamã Lina, até certo ponto, ou da Carina. Neste último caso, podemos dizer que a alma (ou o espírito) é “o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder”, (Foucault, 1999: 28). Afinal, entre uma e outra personagem uma alma o habita e o leva a existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo.

Enquanto Sina de Aruanda se divide em duas partes, uma que é a reconstrução de uma história do passado e tem em mira a grotesca intensificação de seus pormenores, a outra faz com que joguem entre si, constantemente, diversos cenários, diversos motivos vivenciais e diversos campos estilísticos; a reincarnação de Carina realiza uma viagem de descoberta, em que se misturam pelo menos três diferentes categorias de experiência: a experiência mediúnica e fantástica; de onde ressoa o tema do descobrimento de um novo mundo, com toda a surpresa, causando o deslocamento do horizonte e a mudança da imagem do mundo através da construção de um mundo semidesconhecido, primordial do que o presente, que permite uma forma eficaz e, ao mesmo tempo, um tanto graciosamente ingénuo e velado de crítica sobre a situação do “sujeito moçambicano”, sacudindo a situação existente. Pois, lembremo-nos que Aruanda é um prazo, assim retomando, a obra, algo que a história de Moçambique já tem catalogado, num lugar, ainda não bem descoberto, embora, às vezes, é claro, pareça poder ser encontrado em Moçambique.

A história parece não poder se desenvolver livremente, porque uma e a outra parte de si se entrelaçam, num jogo de tensões, contradições, de homologias, etc., associados a uma mistura de estilos. Há, em Sina de Aruanda, “o princípio do redemoinho baralhador, que mistura as categorias do acontecer, da experiência, dos campos do saber, das proporções e dos estilos” (Auerbach, 2018: 237). Assim, impondo um certo efeito de contraste em perspectiva, jogando o leitor para cá e para lá, entre formas de vida rural ou provinciana e formas de vida citadina. Daí o corpo surgir como o lugar onde a barbárie e a dor se corporizam, ao manifestarem o gesto punitivo, por um lado, de uma técnica, que não se deve equiparar aos extremos de uma raiva sem lei. Por isso, a Senhora de Aruanda ao urdir maquiavelicamente um plano para colocar fora-de-jogo a mamã Lina e a Carina, com o intuito de evitar um romance que lhe era inoportuno, vê o tiro sair-lhe pela culatra, esteio a partir do qual toda a trama narrativa é desenvolvida, a certo nível. Por outro lado, o corpo é o lugar a partir do qual a vida persiste e a alma (o espírito) toma consciência de si e do corpo, onde se investe toda a economia da vida. É, por isso, que não é por acaso que a Carina foge, afinal, era óbvio o que se seguiria depois da morte de Pedro Lucas, ante o suplício que a mãe vivia e que se manifestaria (ante a sensação de impotência frente ao Lord Sean) num ritual organizado para a punição das vítimas e a manifestação do poder que pune. Uma vez que era privilégio da Senhoria, e elas, a contraparte, ainda que quisessem, não conheciam todas às peças do processo, sendo que o estabelecimento da verdade era um direito da Senhoria, exclusivo e absoluto. Até porque, nesse contexto, “Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar”, como salienta Foucault (1999: 33), em outro lugar. Mesmo por que, para o leitor comum, a única maneira da Carina escapar ao suplício ou a morte era a fuga, e ela tem um significado que está além do próprio acto.
No interior da trama reconstituída, o leitor que lê a obra vem desempenhar o papel de juiz e parte do problema. Afinal, este vive as ambiguidades de seu papel. Por um lado, levado a entrar no cálculo geral da obra e, por outro, a ater-se as minúcias de suas partes, que podem introduzir indícios e/ou lacunas no processo.

O corpo, o corpo que fala e, se necessário sofre, serve de engrenagem nas duas partes, que correm paralelas como mecanismo e estratégia de figuração e de construção do mundo de papel. Por isso, o leitor, aqui, não pode impôr a interpretação que faz sem, por seu lado, correr riscos (e não é só o perigo de ver morrer a sua interpretação, proposição, expectativa, etc.); ele põe alguma coisa em jogo no processo, como sejam as suas expectativas, proposições, o seu ego, etc.

Ora, essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua na própria corrente da história, como um suporte de um processo que fica na sombra; nele, sobre ele, o acto, por exemplo, de reincarnar age para lembrar o passado, iluminar o presente e abrir possibilidades futuras, aquém do suplício como momento de verdade, mas sim enquanto toda uma poética. Enfim, a lentidão do processo, suas peripécias, etc., têm o papel de uma derradeira prova, pois em cada um dos corpos o jogo não está feito e a vida pode ser salva, ainda que diante da morte certa. Portanto, a ambiguidade do amor, do sofrimento e/ou da esperança faz que se leiam “aí crime e inocência, o passado e o futuro, este mundo e o eterno”, como diria Foucault (1999: 40), quer através do corpo que resiste, quer através da vida que não quer ser arrancada. O exemplo disso, é a Carina que reincarna para reclamar a vida e o amor não completamente realizado. Ou melhor, ela constitui, assim como o seu amado, o amor e a vida, os elementos que, através de todo o jogo de eventos e peripécias, suporta a existência e as suas angústias sociais, que se inscrevem em si e sobre si, num jogo entre o supliciado e o soberano.

Deste modo, a vida e o amor se intercomunicam e se ligam sob a forma de relação amorosa, ou mesmo de desafectos, que exala um poder que não só não furta a se exercer directamente sobre os corpos, mas se exalta e se reforça como experiência; esta parte de um poder que se afirma como poder de vida, cujas funções de vitalidade não são inteiramente desligadas das funções de experiência; de um poder que faz valer os laços (inter)pessoais como cimento da vida, cuja ruptura constitui a extinção da vida, que exige o seu reboot, ao se ver ameaçada e ao procurar a sua renovação através do efeito das manifestações singulares dos sujeitos que a retemperam na ostentação dos corpos que os materializam. Indubitavelmente as personas de Virgília Ferrão estão mais abertas a todas as possibilidades; com a sua visão de mundo, que joga com todos os aspectos, os individuais, sociais, históricos e transcendentes, sendo mais livres que os corpos que povoam Aruanda. Pois, pelo menos, estão menos preso a relação espaço temporal de Aruanda e da relação senhorio-escravo, e são mais inclinados a se enfiar numa outra pele, ainda que seja levado a experienciar, igualmente, parte desse sujeito anterior, que tinha outro corpo. Sofrem mudanças, imprevistamente, uma outra pessoa as olha do seu interior ou com base na sua memória, segundo a situação e os estímulos, como se Virgília Ferrão não se preocupasse com a unidade delas, ao misturar e remexer a alma/espírito destas personas animadas de espiritualidade e humanismo.

Aqui, o passado, a ancestralidade, a vida anterior não representam prisão, mas liberdade e ampliação de visão de mundo. Tanto que o espiritual se encrusta no real quotidiano, e o real quotidiano se engasta no fantástico e no inverosímil; a fala ingénua, às vezes, está cheia de erudição, e as elucidações histórico-ético brotam de situações e de histórias aparentemente dissemelhantes, num jogo carnavalesco, como se Ferrão nos dissesse que tudo se casa com tudo. Daí a sua riqueza de vozes, de estilos e o ressoar de temas e subtemas na obra: o amor, a memória histórica, a(s) identidade(s), a tensão entre mundos e/ou civilizações, etc.

Dificilmente um autor anterior ter-se-ia dirigido assim aos seus leitores. Por isso, não deve o leitor julgar a obra levianamente, apenas pela impressão exterior, sopesando cuidadosamente o que é apresentado, uma vez que o conteúdo possui um valor totalmente diferente daquilo que o continente promete, ou o seu título induz. Isto é, lê-lo como um cão agarrado ao osso. Afinal, trata-se tanto da representação de “um estilo de vida, tanto quanto de um estilo literário”, como sugere Auerbach (2018: 245), quando se refere a Rabelais, em Mimesis: a Representação da Realidade na Literatura Ocidental.

Do ponto de vista estilístico, esta mistura é excelentemente apropriada, uma vez que permite apresentar tudo o que pode ser ingénuo e inverosímil sob uma meia-luz, entre a juvenilidade e o sério, tornando-se mais fácil eximir-se de uma responsabilidade total, ou de uma intenção, no que há de:

ironia produtiva que confunde os aspectos e as proporções habituais, que faz aparecer a realidade na supra-realidade, a sabedoria na doidice, a revolta na alegria confortável e sabedora de viver e que faz reluzir, no jogo das possibilidades, a possibilidade da liberdade. (Auerbach, 2018: 246)

É, por isso, que o leitor tem de colaborar, ao se ver arrastado para dentro do movimento da obra, quer se surpreenda, investigue, etc., quer complete as lacunas deixadas no texto. Porque, assim, não se considera a sequência temporal, que parece algo misturada e confusa, e o(s) espaço(s) que surge(m) em sequência, sem que um pressuponha necessariamente o outro, como trechos inopinadamente apresentados e sem eficácia estética, ou o estilo do modo como é tratado como algo ingénuo, ainda que haja, aqui e ali, rasgos disso. Deve o leitor, depois de certo aprofundamento, ir paulatinamente reconhecendo o campo de forças que engendra o efeito de real e/ou estético.
Esse quadro de tensões, contradições, similitudes, etc., é-nos apresentado com certa ironia, pelo tom ingénuo e quase banal, misturando, por vezes, vários motivos: representação do homem com os seus suplícios, mas sem o tom trágico; uma leve inocência, do(s) narrador(es) sobretudo, que faz que a sua ingenuidade descambe, às vezes, em trechos menos conseguidos e, finalmente, uma tendência de mostrar um certo desconhecimento e relativizar sua própria observação, que avança a medida que a história é contada. Assim, se revelando a ironia por tal modéstia, tratando-se esta de um tempero do seu estilo, que faz desta representação múltipla e cheia de mudanças, adequada ao seu objecto, que é a existência, a vida, os sujeitos que a animam, etc., a partir do corpo que os dá contorno.

De certo ponto de vista, a existência e a vida das personagens são a continuação de um processo que não se concluiu; ou, antes, elas continuam o mecanismo pelo qual o suplício faz passar a verdade secreta e os desejos não realizados para novos corpos, que carregam toda uma memória de lutas e confrontos, de infortúnios e gestos felizes das pequenas histórias e da história não-contada, ou invisibilizada. Num jogo de reescrita da história e seus crimes, das angústias sociais e existenciais dos sujeitos que as viveram ou vivem. Uma reescrita que é também a apropriação da história, dos sujeitos, dos conflitos sociais e existenciais, etc., sob forma aceitável, esvaziado de certos controlos ideológicos. Como parece denunciar um dos narradores em Sina de Aruanda:

Alguns minutos depois vou até à recepção onde aguardam os jovens. Vê-los recorda-me os tempos de estudante, plenos anos doirados, a excitação do começo, como tudo o que é novo, a revolta e a vontade de escapar, como tudo que se torna rotina e, finalmente, quando concluído, a ânsia de regressar aos dias de glória, como tudo o que se torna nostalgia. (Ferrão, 2021: 49)

Onde ele descobre a nobreza, a beleza e a grandeza da juventude, a sua função social, cognitiva, supletiva, com seus crimes e acertos. Por isso, o amor não realizado retorna sob novos corpos para pagar a sua dívida, a de se realizar em sua plenitude, pese embora uma sina o assombre e se entreponha a negar-lhe a desdita. Onde a sina forma a engrenagem entre o passado e o presente, e a morte a porta de um recomeço. A que modifica enfim a organização interna da trama, fazendo que tudo aconteça como se tivesse havido um desarmamento das tensões que reinavam em Aruanda, como se o fim das práticas coloniais tivessem afrouxado o cerco sobre o corpo (afinal a condição da existência humana), isto é, a suavização do sistema antes da suavização das relações sociais e interpessoais e/ou intersubjectivas, que funciona como estímulo para o desenlace da história. Assim, podemos dizer que a proporção entre o desenlace e a qualidade do amor é determinada pela influência que o pacto quebrado, em Aruanda, tem sobre a ordem da história.

Ora, essa influência de um desenlace sobre a obra não está forçosamente em proporção directa com sua força; um desenlace que perturba a consciência tem muitas vezes um efeito menor que um outro que perturbe menos. Muitas vezes, é aí onde reside a raridade do efeito estético e/ou de real, ou ainda a eficácia do jogo de ficção, que multiplica os seus efeitos.

Calcular a economia da obra em função não do desenlace, mas de sua possível conexão com a obra. Visar não o cerco sobre a história mas à desordem estético-cognitiva que introduz, aquém do seu efeito encantatório. De tal modo que se perceba o motivo do leitor pretender voltar à obra, tentando imitá-la. Ler será então uma arte de apreender os efeitos da obra e seus significados; mais que opor a enormidade da obra à enormidade de seus índices, indícios e lacunas, será preciso ajustar uma(s) à(s) outra(s) na (re)leitura da obra e na aferição de sua qualidade e valor: seus próprios efeitos e os da(s) leitura(s). isto é, apreender a manifestação da força da obra mas com a máxima economia. Semiotécnica literária, tal como acontece em Foucault (1999), aqui readaptado, tem algumas regras importantes:
Regra da quantidade mínima: um desenlace é equacionado na obra porque traz vantagens, isto é, produz o efeito necessário ao jogo ficcional.
Regra da imanência suficiente: se o motivo de um desenlace é necessário no jogo ficcional da obra, a eficácia é garantida enquanto representação. Permitindo que a representação do desenlace seja maximizada.
Regra dos efeitos laterais: sob este princípio escondem-se os elementos e relações coadjuvantes, tais como os índices, as lacunas, etc., que conspiram para a composição do todo e seus efeitos. Assim, o leitor se propõe a descobrir todos os elementos e relações; aproximar ou separá-los; estando os estados da obra a variar, devendo-se deduzir os indícios e as lacunas dessas circunstâncias heterogéneas, a partir de seus efeitos estéticos, sensíveis e da razão.

Regra da singularização ficcional: neste princípio os elementos e relações têm efeitos que vão mais longe do que sugerem, representando um peso em toda a economia da obra, ao comporem a coroa gravitacional desta e corroborarem para o todo significativo, num jogo de interdependência e de modulação do mundo de papel, e que se refere à sua natureza, ao seu modo de acontecer e de engendrar efeitos, a sua génese, à qualidade e sua intenção. Sendo possível explicar a partir de um corpus epistémico e teórico. Assim, a pouco e pouco, à medida que, no lugar da história ou do tema, a economia da obra e o jogo ficcional for se tornando importante, então o jogo do espírito ou antes o jogo das representações e dos indícios, que circulam discretamente mas, com necessidade, ganhará evidência no espírito do leitor.

Estas regras são importantes porque ajudam a demarcar os limites da obra de arte e mais particularmente de Sina de Aruanda, porque não só permitem apreender a intencionalidade desta, mas também o não-dito como, por exemplo, de que o mundo exterior serve de cenário e motivação para que as personagens engendrem os seus próprios movimentos interiores, para descobrirem e/ou adquirirem o conhecimento de si pois, em Sina de Aruanda, é o ser que interessa, enquanto representa a mudança.

A arte de construir mundos deve portanto repousar sobre toda uma estratégia e técnica de figuração. A empresa só pode ser bem-sucedida se estiver inscrita numa mecânica ficcional, e é esse o caso de Sina de Aruanda. Por isso é que parte do irónico e da crítica na obra de Virgília Ferrão se mascara sob a força subtil da ingenuidade das personas de papel, que aviva a nossa atenção, sensibilidade e questionamento, recompondo a economia da obra e a dinâmica das tensões, assim permitindo igualmente a acção própria do espírito do leitor. A obra introduz-se, deste modo, no espírito do leitor, ao mesmo tempo, que introduz as sombras que ela deixa, no jogo de fingimento que lhe é inerente, traduzindo em sequências, ciclos e picos de metamorfoses, etc., o discurso estético-literário e mostrando que o código, que liga as personagens, os espaços, os eventos, etc., liga igualmente a realidade do não-dito.
A leitura, deste modo, torna-se a cerimónia da recodificação “imediata” da obra de arte, que a reforma, ao vir tomar um lugar no espírito do leitor. A obra é assim separada do texto. Deixa-a, e com ele se associa permanentemente num jogo de tensões com a memória, a (re)interpretação, a comparação ou a analogia, introduzindo ambiguidades, paradoxos, que podem ou não fomentar a (re)leitura e a (re)significação. Daí se puder interpretar o facto de em Sina de Aruanda se verificar que para cada crime, uma paga; para cada dor, um alívio; assim como os revezes inesperados da história ou dos eventos. Há-de ser por isso que a ingenuidade sentida nas personas de papel nos fazem pensar haver ali um exagero chocante, ainda que tal facto ocorra ligado a personagens que, em princípio, se pode acreditar terem elas maiores recursos cognitivos para evitarem cair nesse(s) cadafalso(s). Todavia, tal facto não fere a dignidade ou a verosimilhança destas personas; mas sim afrouxa o trágico das situações, introduzindo um certo grau de suportabilidade, ao aliviar a carga dramática.

Há todo um arsenal de eventos e conflitos que engendram a tirania do sofrimento e da dor, mas sem o peso de tragicidade que estes sugerem. Onde o corpo é o locus em que se encenam e a partir do qual se propagam. E a falência de um certo corpo é substituído por uma grande arquitectura complexa que se integra no próprio corpo do tempo, para restituir ou para punir. Não é por acaso que Pedro Lucas nos seus momentos finais de vida declare, em premonição e num gesto crítico a sociedade de que faz parte, que:

Procuro por ela. Procuro-a com anseio e determinação. Daqui a centenas de anos. Daqui a milhões de anos, quem sabe. Espero o dia em que a alma seja sábia o suficiente para não temer a solidão, nem os fracassos. Quando o mundo sentir mais sinais de liberdade e o ser humano compreender que nunca estará só. (Ferrão, 2021: 222-223)

A transferência do centro de gravidade da vida para um plano extracorpóreo, introduz esperança, aliviando assim o peso do trágico da morte e do amor não-realizado, reservando a catarse para um outro tempo terreno. Assim, a realidade, individual das personas e do mundo em que se movimentam, modifica-se, torna-se mais ampla, mais rica de possibilidades. Fazendo do destino não algo peremptório e irrevogável, havendo sempre uma margem de liberdade no acto de transformação da sorte das personagens.

Sina de Aruanda não apresenta golpes isolados do destino, onde as circunstâncias, a história, a tensão que se encena, os espíritos dos mortos, etc., participam de múltiplas maneiras, surgindo personagens secundárias e acções paralelas que entram na economia da acção narrativa e da obra, a partir das quais ressoam um pletora de vozes. Num mundo que não tem um pano de fundo fixo, mas sim um tecido que se reproduz constantemente a partir das mais diversas forças. É, por isso, que os eventos narrados estão ligados a personagem que as narra, sendo então justificável a diversidade de estilos entre tais enunciados, que contam a história que brota imediatamente da situação de quem fala e permanece ligada a mesma. Ultrapassando “de longe a representação da realidade nas suas ligações meramente terrenas (ou material); ela abrange a realidade, mas também a sobrepuja”, tal como sugere Auerbach (2018: 292), ao se referir a Shakespeare. Isto fica aparente já com as aparições dos espíritos, sonhos e/ou da reincarnação.

Virgília Ferrão vai além do realismo, quer social quer fantástico/mágico, como procuramos tornar evidente, uma vez que nela se prenunciam as virtualidades do devir literário desta autora, como se pode confirmar nos dois contos incorporados em Espíritos Quanticos: uma Jornada por Histórias de África em Ficção Especulativa (2022). Assim, a ternura ingénua e irónica de Virgília Ferrão ilumina tudo o que encontra no processo de evocação do mundo de papel, associado com um certo suspense doseado e o mais suave realismo intimista, que permite que o leitor capte e trabalhe o mundo por ela representada, ressignificando-o.

A estratégia narrativa, em Sina de Aruanda, sem deixar de ser uma maneira de fazer vingar os princípios, normas e protocolos estético-literários, tende a fazer crescer as tensões, a velocidade, os rendimentos do efeito de real, como ainda modela o desenvolvimento da história e faz os corpos (as personas) entrar numa máquina e nas forças que engendram a obra.

Se o efeito estético e de real se instituem através de ciclos e picos de metamorfoses, e se está directamente ligado ao centro da soberania da obra, o tipo de efeito que exerce, os mecanismos que põe em funcionamento e os elementos e relações aos quais os aplica são específicos. É um aparelho coextensivo ao corpo da obra inteira, e não só pelos picos que atinge, mas também pela minucia de detalhes que nos disponibiliza.
Ora, é preciso notar que esses picos de metamorfose, se ocorrem, não funcionam numa só direcção. É na realidade um sistema de entrada dupla: liga o evento à coroa gravitacional da obra, mas também a um antecedente, por exemplo, a ideia de sina com a morte da Carina e sua reincarnação. A economia da obra sanciona um conjunto de efeitos, personagens, acções, etc., que fazem de Sina de Aruanda um objecto de arte. O tema da midiunidade, a relação com a história, a pesquisa e o(s) saber(es), etc., que a reincarnação de Carina acorda, deu a Virgília Ferrão a possibilidade de mostrar o mundo nos seus vários matizes e complexidade, através de uma perspectiva não-julgadora, que a ingenuidade e a ignorância e certa curiosidade permitiram instituir.
Esta é, segundo nos parece, a função da ingenuidade, do fantástico (mágico) e do realismo em Sina de Aruanda. Quando o tema – o amor que desperta na reincarnação de Carina – começa a inflamar, toda a história se precipita, confrontada com o passado, com o mundo dos vivos e dos mortos, enquadrando um quadro múltiplo de realidade e de realismo intimista (e não só), que fazem desta uma obra que aponta em múltiplas direcções, denunciando já o devir de Virgília Ferrão.

Bibliografia
AUERBACH, Erich. (2018). Mimesis: a Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva.
FERRÃO, Virgília. (2021). Sina de Aruanda. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.
FERRÃO, Virgília. (2022). Espíritos Quânticos: uma Jornada por Histórias de África em Ficção Especulativa. Maputo: Diário de uma Qawwi.
FOUCAULT, Michel. (1999). Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes.

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