Frank Paco e Tiago Correia Paulo. Dois moçambicanos no Sakifo.

Não houve bandas moçambicanas este ano no Sakifo, um dos maiores festivais de música da região. O multi-instrumentista, compositor e produtor Tiago Correia Paulo e o compositor e baterista Frank Paco, ambos moçambicanos, integraram dois projectos que se apresentaram entre os dias 03 e 05 de Junho, em Saint-Pierre.

Quando em 2014 aconteceu a primeira edição talvez não se previsse receber cerca de 20.000 pessoas, principalmente na faixa etária dos 20-30 anos, em 2018, de acordo com o portal do programa de rádio norte-americano de música africana e sua diáspora, “Afropop Worldwide”.

É provável que, em face da pandemia este número tenha caído, embora as estatísticas ainda não estejam disponíveis. Mas houve adesão de um grande público, como testemunhamos.

“Em termos de conteúdo, não mudou muito”, respondia Jérome Galabert ao “Sunday Times”, jornal sul-africano, dias antes do seu início, sobre o alinhamento da presente edição. “Sempre foi sobre ter muita diversidade na programação – alguma modernidade, alguma música tradicional – tudo combinado”, acrescentou.

Há muitas bandas, prosseguiu, envolvidas e desde os primeiros dias tivemos muitos palcos – quatro ou cinco, e ainda temos isso – palcos de tamanhos diferentes no mesmo local. E o facto de sempre acontecer numa ilha as pessoas são realmente misturadas e a diversidade está em seu DNA sempre o fez pensar que a diversidade é uma marca que não se pode perder no Sakifo.

O nome do festival, explicou Jérome Galabert na mesma entrevista, significa “o que é necessário” em crioulo, que no caso é uma mistura de Bantu e francês, sobretudo. Trata-se, portanto, de “uma afirmação forte e positiva da nossa diversidade. Queremos primeiro para nós e quando digo nós, refiro-me às pessoas da ilha que merecem ter acesso a esta mistura de artistas”.

Com menos dois palcos que os anteriores sete, o Sakifo deste ano estava envolto a uma particular atmosfera do pós-Covid, pandemia que, parece ter caído nas estatísticas quando a media ocidental se voltou para a Ucrânia, com a invasão russa. As câmaras dos smartphones registavam selfies de semblantes alegres. Os memes captariam os andares cambaleantes. Entretanto essas engenhocas não captariam a euforia de descobrir um baixista singular, um baterista com um som denso e todas aquelas cores tonais de uma voz que parece ser de todos nós, que nos toca no âmago do ser com a sua energia. Nem descodificariam a sensação de pés doloridos.

Percorrendo o recinto, a beira-mar, que habitualmente acolhe o festival, a máscara já é uma opção dispensável. Seu uso não é obrigatório. São excepções rostos cobertos e muito provavelmente de turistas.

Deixando para trás o palco maior, para os outros quatro, nas laterais com zonas restritas há cabines brancas de segurança e outros serviços de produção, assim como as de troca de dinheiro cash que, já digital, era recarregado num dispositivo metálico, de talvez dois centímetros, acoplado a fita de acesso, com o qual se podia comprar bebidas, refeições e afins. Por exemplo, nos bares dispersos, ao comprar uma cerveja, esticava-se o braço, um dispositivo que se parece com um smartphone, os vendedores facturavam o valor do produto, apontando para a pecinha metálica e o desconto era automático.

Nesses vai e vens, cada palco te convida com acordes de uma guitarra, um teclado, precursão e ou xiquitsi mesmo, um dos instrumentos do cancioneiro folclórico da ilha, o maloya. Ou mesmo um trompete. Uma tentação que tira o poder de encanto do canto da sereia na mitologia e contos de fada.

Sem interferência da música entre os palcos, que se distanciam o suficiente para que cada músico ou banda faça a sua performance, todos estão ocupados e activos, simultaneamente, a excepção do momento de troca de bandas.

BCUC, regista este nome

O céu acinzentava enquanto o sol ia-se embora, o relógio, com duas horas de avanço com Moçambique no fuso, apontava 18.50. No palco principal, para abrir o festival, os sete integrantes da banda sul-africana BCUC, iniciam o que será um ritual que mistura o tradicional com o moderno, numa obra contemporânea.

Ao arranque da primeira faixa, a sensação foi de estarmos a receber a invasão de um exército zulu, tal é a fúria encarnada pelo conjunto de Soweto. Entrolhos do público, surpreso com o que está a ver no palco.

Uma incredulidade toma qualquer desprevenido com a energia que vem daqueles ecos do gospel americano, mas executados de uma forma única, sui generis, arriscaria. Entretanto na direcção que o conservadorismo cristão designaria de profana. A voz autoritária de Jovi (vocalista, percussões), balanceada pela Kgomotso (coros, voz, percussões) suportada por Hloni (improvisos de rap e percussões), Luja (improvisos de rap, coros, marcha de tambor), Cheex (congas), Skhumbuzo (bumbo) e Mosebetsi no baixo lidera o conjunto e a audiência.

Demasiado invetivos, a apontar para uma direcção diferente do convencional, exibiram uma performance com momentos selvagens que pareciam a invocação de espíritos ancestrais e declamações de Zithulele Nkosi. O público tomado e obediente, apenas participava em transe transcendental.


A intensidade de Bongeziwe e Tiago

Noutro extremo, no segundo maior palco, instantes depois subiu a dupla na voz e guitarra Bongeziwe Mabandla e produtor e multi-instrumentista moçambicano Tiago Correia Paulo. A expectativa era ouvir um repertório que misturasse “Imini” de 2020 e Mangaliso” de 2017. São os dois trabalhos em que já colaboraram.

Entre a multidão, antes do palco, vê-se cabelos louros, morenos, crespos, a obedecerem a direção sul do vento. O fumo dos cigarros faz a mesma coregrafia. A composição de luz faz a atmosfera. No centro acende e apaga. Desfoca. Ora num ora noutro. De guitarra ao colo, fato azul, descamisado, Bongeziwe Mabandla dá a sua voz e acordes ao público. E Tiago Correia Paulo envolve esses dois elementos com o seu arsenal que inclui bateria, lupes, sintetizadores, texturas e outros elementos sonoros.

O guitarrista das míticas na África do Sul e em Moçambique – sobremaneira a primeira – 340 ml e Tumi and the Volume se distribui entre os instrumentos, numa concentração que faz parecer que tocar guitarra, largar a reproduzir no Luis, para “entregar” a bateria que tem uma sonoridade única, talvez acentuado pelo drum trigger que dá um efeito de uma bateria eletrónica. E outros instrumentos.

Algumas falhas no microfone não ofuscaram esta voz sombria de Bongeziwe Mabandla que nos quer falar de amor, da vida em letras Xhosa, esteticamente categorizadas no afro-soul alternativo sul-africano. Menos contido que nas performances em Maputo, o músico desceu do palco para cantar no meio do público que o aplaudia.

Num certo instante, a dupla interpretou algumas músicas novas, que poderão constar do novo álbum que poderão lançar, ainda este ano. O Tiago, na conferência de imprensa que tivemos antes do show, preferiu não revelar o título deste trabalho que já está a ser negociado com a Record Label.

Com as diferenças e particularidades devidas, comentava José dos Remédios, ouvindo Continuadores (que faz conjuntamente com TRKZ, e, nalguns casos, com a colaboração de Pedro da Silva Pinto), percebe-se parte do universo criativo, inventivo e estético de Tiago Correia Paulo.

Jazz a serviço do universal

Outra banda integrada por um moçambicano presente no Sakifo, foi Kombo, liderada pela compositora e interpréte Mélanie Bourire, da Ilha Reunião. Ela própria é uma mistura de culturas marroquina, indiana e francesa. Essa diversidade faz-se sentir na música do trio que tem Frank Paco na bateria.

Mais maduro o músico moçambicano autor dos álbuns “Buyanini” e “New horizont” neste projecto tem uma toada mais leve com o instrumento, numa execução relactivamente mais standard do jazz. Sem perder a precisão.
Paco que liderou os Tucan Tucan e integrou Loading Zone, na altura em que esteve radicado na África do Sul. Neste trabalho, não obstante, a sua versatilidade é convidado a percorrer as sonoridades do Marrocos, Ilha Reunião, Índia, França…

A performance do trio foi a beira-mar que, aos intervalos dos artistas, cantava a sua música quando quebrava as suas ondas nas margens da praia. Foi um espectáculo morno, menos cativante, comentava-se, que o feito, dias antes, no Le Kerveguen, uma sala fechada, no contexto do IOMMA.
Outra integrante do projecto, com os seus sintetizadores e o teclado ia acompanhando os scats e canto arábico da vocalista, que além do mais é uma bela mulher que leva a banda para o jazz latino e universos mais.

Até o dia 05, data de encerramento do festival, seguiram-se outras bandas, que continuaremos a explorar nas próximas publicações.

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