Automático: todos vacilam

Assumi as culpas, lambi o dedo polegar, fiz as unhas, meus dentes são adultos, mas ainda têm atitudes imaturas. É minha culpa, minha tão grande culpa, recordei do Credo, meus joelhos que só tocavam o concreto à procura de êxtase, pensaram em rogar por mim para que meu reino não tivesse fim, mas faltou fé. Hoje vejo que foi traição, enquanto aprecio o homem, a personagem do espelho que criei escutando Nick Hakim. Foi manipulação, criei um universo reles, pois não queria perder a vítima, ela me conforta e me ajuda a mergulhar os pés mornos na água cristalina do “a culpa não é minha, que mais poderia fazer?”.

 

Detesto cães, mas alimentei por muito tempo um vira-lata desonesto, que mordeu minha mão integra, pensando que poderia encurtar processos. Kafka, não consegui ser malabarista, mas juro que hoje já não sinto, sacie esta fome e acredito.

 

Queria ser tão concreto, dizer as coisas tão claramente, mas o único dedo, o polegar, que uso para digitar este texto, está tão melancólico.

Mulher, juro que vou parar de escutar Nick Hakim, mas a orquestra que faz a trilha sonora das músicas que martelam minha consciência repete vezes sem conta o coro de “Boucing”.

“All these lonely strangers marching through the snowstorm
Tryna find some peace of mind, we all keep bouncing
All these lonely strangers marching through the snowstorm
Tryna find some peace of mind, we all keep bouncing”

A música sai do coro e prossegue, parece que a voz de Hakim ecoa de uma masmorra:

“She was walking towards me
Her form was faintly morphing
I said please
Say something
She grabbed my hand and disappeared”.

 

E na madrugada não escuto vozes reveladoras, apenas o cântico da mesquita, hoje dormi na Mafalala, estou mais lúcido e vou assumir o risco, vou dar autorização ao polegar para tirar do papel o personagem que passei a semana a construir: a ficção é este piloto, que nunca dirige em modo automático.

Boucing

Hoje ele acordou emotivo, pensou em descalçar os estereótipos, ajoelhar, segurar a areia e deixar as lágrimas escorrerem, enquanto se rendia às evidências. Mas só conseguiu soltar um grito, enquanto batia a mesa vazia.

 

Sem cigarros, sem álcool, só a água no copo e a conta por pagar. “Fecho ainda neste mês, não se preocupe, boisse”, ensaiava a desculpa, enquanto fechava a porta. Quando há pressa, os passos são lesmas que andas para trás. Pensa em voltar atrás, mas a entrevista de emprego foi ontem e hoje acredita que ainda pode chegar no local com entrevistas por fazer. Mas a universidade estava vazia, uma lista de entrevistados e sua falta.

 

No seu ouvido rematava uma frase embriagada, que soluçava “o pior acontece”. Sem forças para andar e ousadia para ajoelhar no concreto do pátio e deixar as lágrimas preencherem os interstícios do pavê, subiu para uma das salas, sentou na cadeira de professor que seria se tivesse comparecido à entrevista.

 

“Bom dia, pessoal. Sou o vosso novo docente. Amaral Afonso é meu nome. Amaral. Professor Afonso. Qualquer um dos nomes me pertence, chamem como quiserem”, falava e o eco era um sopro na ferida. Abriu o laptop, por sorte conectou o Wi-Fi, que era grátis, baixou um álbum, tentou escutar, mas o som era trêmulo, a voz de Nick Hakim era tão introspectiva, crua, num compasso desajustado que feria o ouvido. “Devem ser as colunas do aparelho, pensou”. Em casa, tirou os sapatos, olhou as panelas, deixou a porta entreaberta para o chulé abandonar a sala e deixá-lo frente a frente com Nick Hakim.

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