Ventura Mulalene vence o “Better Future” 2022

As sirenes dos comboios já apitavam. Na Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique, onde se localiza a Galeria da Associação Kulungwana, também já se ouvia o roncar dos motores das locomotivas, quando Ventura Mulalene foi anunciado como o vencedor do prémio “Better Future” – Melhor Futuro 2022.
Poucos minutos passavam das 17 horas e o sol já se punha. Como habitual, pessoas na sua maioria residentes nos arredores da Cidade de Maputo, alvoroçavam-se nos corredores da estação, na busca pelo transporte para deixar a urbe. É também nos corredores dos CFM onde artistas, apreciadores e colecionadores de arte, para além de outras individualidades, reuniram-se para ver, ouvir e sentir as emoções da cerimônia de premiação do “Better Future 2022”, distinção instituída em 2020 pela seguradora sul africana, Hollard, para coroar as três melhores obras patentes na exposição coletiva anual “Coleção Crescente”, inaugurada na ocasião no regime presencial, depois de dois anos no modo virtual devido às restrições da anti Pandemia.
Deste modo, o artista plástico Ventura Mulalene, conquistou o primeiro lugar do “Better Future 2022” entre um total 135 artistas participantes, provenientes de diversas províncias do país, e 301 obras submetidas. Dividiu o podium com o designer e desenhador Zadoc Nhacocome e a artista plástica Ulica Abrantes, em segundo e terceiro lugares, respectivamente, e ainda, Thandi Pinto, como menção honrosa. O trio vai, ainda este ano, particular de uma residência artística de três meses, na White River Galery, na África do Sul.
Na presente edição, os artistas trabalharam sob curadoria da holandesa Mieke Oldenburg e foram desafiados a aplicar diferentes técnicas e produzir, sobre 18 centímetros de tábuas de madeira, reflexões em torno dos “Jogos Tradicionais e Populares em Moçambique”.
O tema é, em si, uma provocação. Por um lado, quis trazer o pensar de cada artista a respeito das formas de recreação das novas gerações e, por um outro, (re)acender o debate sobre o iminente desaparecimento dos Jogos Tradicionais e Populares de Moçambique face às novas tecnologias.

O maior ganho é o intercâmbio com outros artistas

“Foi uma experiência óptima”, reagiu Ventura Mulalene. O artista submeteu duas obras, intituladas “Ovo Podre” e “Lencinho Caiu na Mão”, a pensar nos jogos numa dimensão que transcende o lazer e recriação.
“Gostei também da temática, porque sugere muitas coisas. Eu queria trazer os jogos numa vertente política, não só no sentido de brincadeira”, explicou.
Sempre olho os jogos como algo muito sério, prossegue, porque sempre podem envolver aldrabices e batotas. Nos trabalhos patentes na “Coleção Crescente”, Ventura Mulalene “brincou” entre as responsabilidades que envolvem o detentor do “Lencinho Caiu na Mão” e a repugnância do “Ovo Podre”, a procurar encontrar semelhanças com o ambiente político, de um modo geral.
“Achei engraçado trabalhar com estes termos, muito comuns no nosso dia-a-dia. Queria interpretá-los de uma forma visual, fazendo de um jogo uma questão filosófica e muito séria. A ideia dessas trapaças que tentamos fazer para ganhar a vida, porque ganhar e perder têm a ver com jogo”, detalha.
Para o artista, é sempre bom ganhar prémios, muitas vezes em dinheiro, mas é também necessário apostar em iniciativas que visam dotar os fazedores de mais conhecimentos sobre as técnicas de produção.
A olhar para o “Better Future”, prémio que além de oferecer certificados de participação, dá aos três vencedores a oportunidade de fazer parte de uma residência artística numa das mais célebres galerias da África do Sul, o também designer vê uma fonte de aprendizado, na medida em que o intercâmbio com fazedores daquele país vizinho pode galvanizar os meios de produção artística no país.
“Muitas vezes, os prémios são em valores monetários, mas neste caso, viajas e vais ter experiência de outros artistas, o que é muito bom”, descreve, a justificar que “tu enriqueces o teu currículum e o teu trabalho ao nível técnico, por exemplo”.
Este é um grande ganho para o artista, continua Mulalene. “Primeiro, porque vês que estás a trabalhar e as pessoas estão a ver. Mas também imagino que lá vou aprender muito”.
Empolgado pela possibilidade de participar da residência artística de “White River”, na RSA, Ventura Mulalene não afasta a possibilidade de realizar projectos de exposições, logo que retornar ao país. Entretanto, afirma que “é possível que de lá nós aprendámos técnicas difíceis de aplicar em Moçambique, por causa da escassez do material, por exemplo a Xilogravura e a gravura, em si, que já estão avançados na África do Sul”.
Mesmo a própria pintura, que é simples, avança, sofre da falta de materiais. “Só encontras o acrílico básico, mas as tintas de mais qualidade para pessoas que querem levar a arte a sério, temos que encomendar. O mesmo acontece com a caneta posca, que eu uso muito, já não temos a venda”, lamenta.
Necessário acrescentar algo ao talento
Incrédula com o terceiro lugar do “Better Future 2022”, era notória a satisfação no rosto da artista plástica, Ulica Abrantes. E não é para menos. É que esta artista, que abdicou da Engenharia Civil para experimentar outros mundos, encontrou-se nas artes.
“Sou artista há pouco tempo e ganhar este prémio tem uma importância especial, porque a minha primeira exposição foi nesta coleção, em 2018”, recorda.
As obras que a artista submeteu para a “Coleção Crescente” abordam a questão da criatividade e capacidade de reinvenção das crianças, partindo do exemplo do papagaio.
“A nossa infância aqui é, essencialmente, na rua e com brincadeiras. No meu tempo, não havia tantos eletrónicos como hoje. Por isso acho interessante a questão do papagaio, porque as crianças é que produzem o próprio brinquedo a partir de restos de saco plástico e paus”, conta a acrescentar que “nos dias de hoje, em que as crianças usam muitos aparelhos electrónicos, é interessante trazer algo que não precisa de bateria, funciona a vento e é feito com a própria mão”.
Não contava, mesmo, que fosse conquistar o terceiro lugar, acrescenta, porque os nomeados são pessoas com muito talento. “O prémio também é muito bom, porque para mim, como artista nova, ir fazer uma residência artística na África do Sul é mais do que um prémio monetário ou troféu, porque vai acrescentar algo ao nosso talento e técnicas”, defende.
Ulica Abrantes é uma artista com interesse em questões ambientais. Faz pinturas e esculturas em suporte de restos de madeira encontrados em praias, como forma de reaproveitar os restos de barcos e outros materiais deixados no mar.
“É um mundo novo, sobretudo para quem estava na engenharia civil”, desabafa.
Tem duas individuais, “Habitantes da Madeira” – a primeira – na Machamba Criativa, no Centro Cultural Franco Moçambicano, e “Vozes de Mulher”. E, ainda, vai participar, em Maio deste ano, na segunda edição do projecto Gineceu. A mostra é coletiva, reúne 10 mulheres e é organizada pela Associação Kulungwana.
Um prémio em meio à grandes desafios

Fotografia de Yasmin Forte

Artista, plástico, designer e músico-guitarista, Zadoc Nhacocome é um artista que vai crescendo com a “Coleção Crescente”. Participa na mostra há quase 10 anos, isto é desde a edição de 2014, e tem acumulado grandes bagagens desta exposição ano após ano.
“Durante este processo progressivo, até agora que temos a experiência de ter nomeados e vencedores, o que antes não havia, a minha participação tem sido especial e desafiadora”, conta.
Desafios, estes, que, segundo Zadoc, nascem da necessidade de adaptação às novas técnicas a que a curadoria tem abraçado ao longo do tempo.
“Enquadrar as ideias num quadradinho de 18 cm, bem pequeno, foi o primeiro desafio”, conta, a recordar que “estávamos habituados a trabalhar em A4”.
Além do repto de incorporar ideias num pequeno espaço, Zadoc Nhacocone descreve como uma tarefa árdua, a responsabilidade de encontrar foco nos “Jogos tradicionais e Populares de Moçambique”.
“Partiu de um exame, na verdade. Tive de recuar, buscar um espírito há muito adormecido e voltar a experimentar sensações da infância” recorda.
Sobre a “Coleção Crescente”
A exposição coletiva “Coleção Crescente” é um encontro anual, que junta centenas de artistas de todos os cantos do país, entre novos, estudantes e os já consagrados, privilegiando a participação de mulheres.
Decorre desde 2011 e conta com a premiação do “Better Future” – “Melhor Futuro”, desde 2018, com o patrocínio da seguradora Hollard, que distingue as três melhores obras.
Tem em vista a abertura de espaço para o surgimento de mais cidadãos colecionadores de arte, como forma de contribuir para a melhoria da condição económica do artista.

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