Como Ler Nós Matámos o Cão Tinhoso hoje?

Escrito por: Léo Cote

Quando a Fundação Fernando Leite Couto nos convidou e nos colocou a pergunta que orienta este texto, apresentado parcialmente na tertúlia que conduzimos na sua biblioteca, pusemo-nos a vasculhar um conjunto de saídas, por um lado, questionamo-nos sobre a situação desta obra hoje a partir de um conhecimento crítico sócio-literário e histórico; e por outro, a partir dos semas, significados e efeitos estéticos que esta institui. Mas, ante o tamanho da empresa fomos pelo caminho mais fácil, a via temática, e colocamo-nos a seguinte questão: Que aspecto atemporal permitiu e/ou permite que Nós Matámos o Cão Tinhoso seja parte do cânone literário moçambicano que lhe permitiu atravessar gerações de leitores? Claro que não existem respostas fáceis e simples. Daí esta introdução.
Falar de Nós Matámos o Cão Tinhoso é falar de uma obra que tem mais de meio século de existência e que tomou a forma que tomou no contexto colonial, tendo sofrido no transcurso do tempo múltiplas leituras/interpretações e, por consequência, influiu sobre as gerações de autores/leitores que se seguiram, animando-se sempre de uma certa vitalidade ao se fazer e se manter como obra canónica do sistema literário moçambicano. Na origem desta obra estão razões éticas e humanas, que o texto projecta e aflora, isto muito a dever-se ao processo e ao sistema colonial enquanto pano de fundo de todo o exercício de figuração. Até porque, como nos assegura Ngoenha (1992: 14), no período colonial, “num mesmo espaço geográfico, e muitas vezes numa mesma casa existiam, não só dois mundos de tradições e memórias completamente diferentes, mas se estavam construindo concomitantemente dois universos diferentes”. É verdade que as leituras/interpretações nem sempre se orientaram e/ou se orientam a partir dos mesmos semas e significados, uma vez que os códigos linguísticos, estéticos, etc., sofreram e/ou sofrem mutações significativas, fazendo um momento ser diferente de outro, ou mudarem as lentes de leitura.
Nós Matámos o Cão Tinhoso passou da periferia (colonial) para o centro (pós-independência) do sistema sócio-literário moçambicano. É evidente que esta mudança advém da amálgama de leituras/interpretações que modificaram profundamente a compreensão e o olhar sobre Nós Matámos o Cão Tinhoso. Isto faz-nos interrogar sobre os semas e significados que pôs em jogo no transcurso do tempo, enquanto artefacto e objecto de leitura. Pois, esta obra saiu da condição de obra literária subalternizada para a condição de obra canónica, embora, é claro, esta não tenha consciência da mudança que as leituras/interpretações provocaram e/ou provocam do ponto de vista metalinguístico e sócio-literário. O campo da literatura, tal como a história, ao se instituir como:

terreno de luta, de realização e de crescimento. Não só da racionalidade, mas também da fantasia; o sonho como modalidade de pré-consciente e de inconsciente encontram possibilidades de explicitação, como forças explosivas e inventivas. (Ngoenha, 1992: 14)

Assim, sugerindo que Nós Matámos o Cão Tinhoso só tem sentido na sua relação com o mundo de ideias que a ultrapassam. É assim que na esfera da crítica vemos surgir duas esferas de vida, uma a da obra literária em si e outra a da sua interpretação, inaptas isoladamente.
Nós Matámos o Cão Tinhoso por ter nascido no contexto colonial não se pôde furtar a interpelar a história, mesmo que fosse para mascará-la tal como a literatura colonial o fez, entrando em tensão com o sistema literário moçambicano então nascente, sistema do qual faz parte esta obra. Não é por acaso que no processo de figuração, em Nós Matámos o Cão Tinhoso, “a memória individual e a memória colectiva articulam-se, confrontam-se, alimentam-se reciprocamente e se contradizem”, tal como, Ngoenha (1992: 30), sugere em outro lugar. Até porque, afinal, “somos mistura de duas historicidades: uma colonial e outra étnica”.
Entretanto, não podemos reduzir a obra a uma mera projecção do seu tempo, como muitos estudos parecem apontar, nem sequer como um espelho de invasão do presente que a tornou possível, que é, portanto, duro e repleto de perversões, como parece enfatizar certa ortodoxia, ou ainda a reduzir a ela mesma, como se ela tivesse surgido do nada. Nós Matámos o Cão Tinhoso é, com certeza, mais do que isso. Pese embora, esta se realize igualmente como defesa da humanidade africana, um gesto que serviu e/ou serve para a estruturação e formação da singularidade da literatura moçambicana e contribui para a formação da identidade, no sentido, de fundar e fomentar a própria dignidade humana. Daí ser então necessário procurar um centro que apresente um valor acentuado e seja rico de sentido, mas esse centro não pode ser, em nenhum caso, redutor e simplório. Porque ora vejamos, em Nós Matámos o Cão Tinhoso só o pormenor recebe uma estrutura épica, por isso não é por acaso que a colectânea de contos mantém uma certa unidade, que é temperada por uma atmosfera e um saber, não da acção dos protagonistas; pois esta não poderia encontrar em si a sua perfeição e o seu acabamento. Do ponto de vista do conjunto, não há conto que se possa rejeitar como supérfluo. A totalidade de cada conto e da obra no todo se faz sentir em cada narrativa e no conjunto de sua interacção como um vasto pano de fundo.
Se a obra se constitui como uma victória sobre o real, no entanto, o destino das personagens aparece então como uma derrota, que compromete o presente, mas conquista uma substância liberta de ilusão, que só no fim se revela, e corrói qualquer tipo de resignação, como se fizesse descer uma luz retrospectiva de uma significação imanente, entre a alma e o mundo em relação dinâmica e que possibilita a mudança de semas e sentidos. É por isso que, em Nós Matámos o Cão Tinhoso, com uma e outra excepção, embora se possa deduzir o trágico, o trágico não surge no centro da cena. E sim o seu contrário, o irónico e desolador. Uma vez que a atmosfera colonial e o desumano pulverizam cada um dos contos, em sua ética de negação do outro e do diferente, assumindo um pano de fundo geral, que se manifesta através da figuração extremamente humanizada de protagonistas que o contexto os subalterniza, enchendo-os de complexidade psicológica e emocional. No que tem mais comovente e humano.
Justamente nas passagens em que a obra tenta penetrar no campo do problemático ou do trágico, surge o seu realismo humano-trágico não directamente figurado, como se o autor nos estivesse a sugerir ser tal brutal, sendo preciso outra candura, que a obra encena, para suportá-lo. Não é por acaso que não nos surge representado todo como realidade, ante as angústias sociais que sugerem de antemão a tragicidade da situação, que não é inequívoca e irrevogável. Por isso as personagens surgirem como sujeitos com interesses, intenções ou visões mais vastas do que o destino que o contexto lhes oferece. Isto é, com um tipo de relação que revela a sua inadaptação, ante uma realidade que ganhou maior importância, pois a diferença estrutural decisiva que daí resulta é que já se não trata aqui de um a priori abstracto em face a vida, mas antes uma realidade igualmente interior rica em conteúdos que entra em concorrência com o exterior, e que possui em si própria uma vida rica e movimentada, e se dá como realidade que anima a vida e se vai nutrindo de confiança, como sendo a própria essência do sujeito e do mundo.
Em quase todas as personagens centrais dos contos, vê-se instaurar uma tensão entre esses dois mundos, a discordância entre a interioridade e o mundo (colonial), como se elas estivessem agitadas e a sofrer pressão que as levasse a tirar todos os conteúdos das entranhas da sua interioridade, de preferência a assumir os conflitos e as lutas do mundo que as envolve. É por isso que vemos Ginho, no conto “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, a assumir ter medo e encarando os seus conflitos diante dos seus “amigos”, uma vez que estabelece um laço de identificação com o cão tinhoso, que vai para o abate, ao ver-se resolvido a não matá-lo, como se tal acto ferisse o seu espírito, a sua alma, os valores que ali estão em jogo.
Esta tomada de posição de Ginho leva-o a apossar-se pouco a pouco do mundo (realidade) que o cerca, extraindo-lhe os seus símbolos. Há-de ser por essa razão que o processo de singularização é posto em movimento a partir da lupa desta personagem. Esta estratégia estético-literária reduz-se, contudo, em última análise, a um problema ético. Até que ponto se justifica àquele acto, agravado pelo facto de ser cometido por um grupo de crianças, que começam a encenar as perversões do sistema. A insatisfação de Ginho ante aquela cena e situação é prova de que este deriva de um descontentamento ético e humano contra o aspecto exterior daquele presente, num jogo de tensões “entre as condutas e a alma, entre destino interior e destino exterior” (Lukács, s/d: 121).
Esta situação de facto provoca um conjunto de perplexidades em todas as direcções. E a falta de ética e a falta de acepção do outro enquanto singularidade coloca a questão do sensível, da sensibilidade, que faz que a implacabilidade dos modos (coloniais) se revele enquanto actos desumanos e fúteis, que “cresce de maneira desmedida ao mesmo tempo que se ilumina com uma luz impiedosa a dependência da sua situação em relação, precisamente, com um estado particular do mundo”, como diria Lukács (s/d: 124). Por isso, a existência das personagens se faz enquanto subjectividade que nada de exterior interrompe ou move, numa série de fragmentos contínuos que põem em cheque àquele precário equilíbrio de forças e de assumpção de si, ante um mundo demasiado hostil e em vias de se decompor. Daí o seu carácter problemático e perturbador.
A crueldade da decepção, por exemplo, do Madala no conto “Dina” é significativa, se tomarmos em conta o que temos estado a dizer, pois não traduz apenas a situação trágica de um velho e de um pai obrigado a assistir, resignado, a humilhação da estrutura colonial, que o capataz representa, ao se deitar com a sua filha e sequer saber ser àquela a filha do Madala, o que exprime de maneira chocante essa falta de relações humanizadas. E aquela matriz só se torna constitutivo daquelas subjectividades apenas a partir do momento em que as ligações com a(s) identidade(s) e cultura(s) das personagens estão partidas e/ou perdidas . Mas, a subjectividade é também a maneira como a psique, só para simplificar, resiste ao sentido presente, a maneira como mantém o seu “foyers” ético, estético, cultural, etc., ante um sistema (e as pessoas que o representam) que afirma a sua vontade de subsistir na sua própria imanência, perfeitamente fechada.
E por isso todo o valor é aqui atribuído ao que é vencido, ao que está em vias de se estiolar, sendo ao sistema e as pessoas que o representam que se reserva toda a brutalidade, assim pondo em causa a ideia de civilização, humanidade e superioridade. Afinal, é o carácter unilateral da força victoriosa a partir da qual a ironia se concretiza e ganha novo(s) significado(s). Até porque, o capataz ao mostrar que a filha do Madala é uma prostituta, é falho de maturidade e recalca um sentimento de inferioridade que mascara com sua brutalidade, porque aquilo que toma como valor é um não-valor, atributo da juvenilidade. Isto parece ingénuo dizê-lo ou um fraco argumento, no entanto, o conto “A velhota” aponta nesse sentido.

Por que não acreditar em qualquer coisa de giro? Que, talvez, eu sei lá, que talvez para com eles o tempo obrigasse a mais compreensão, mais carinho, sim, a mais humanidade… (Honwana, 1984: 66)

Assim, apontando para um lugar possível, de esperança, ao mesmo tempo em que assume não terem, as pessoas que representam o sistema colonial, acepção do outro e do diferente, amor e humanidade. É por isso, que, em Nós Matámos o Cão Tinhoso, embora os textos tenham a sua autonomia, os contos são, igualmente, um conjunto comunicante, enquanto constituintes de uma mesma coroa gravitacional e em diálogo permanente, apontando para qualquer coisa além de si. Não é por acaso que as personas de papel nos seus gestos, nas suas falas, nas suas acções, etc., para além de todo o desespero e de toda a desolação dos seus conteúdos, tornam visíveis os germes e os traços desse(s) “foyers” perdidos e em assumpção. Daí fazer sentido ser realmente necessário, para o mundo de papel, que o sentido, que o sistema (colonial) encena, perca a sua imanência no vivido, naquilo que a narrativa nos doa de forma nua. Para que, no fim, essas subjectividades tenham “o poder de evidenciar e de apreender o sentido da realidade”. Uma vez que “os fragmentos de real mantém-se simplesmente justapostos na sua duração, na sua incoerência, no seu isolamento” (Lukács, s/d: 131).
Assim, que não nos enganemos, tal como em Madame du Chastel, em seus traços gerais, como nos dá conta Auerbach (2018: 203-228), aqui ocorre algo similar, uma vez que o pano de fundo colonial não destrói a grandeza do Madala, em “Dina”, pois, pelo contrário, permite que ele se integre nas circunstâncias que lhe são dadas; e até o seu carácter tolhido, humilde, que se inclina obedientemente à vontade do capataz, mostra mais efectivamente a força pura e a liberdade do seu ser que se realça na necessidade. Afinal, deve-se escolher entre dois males o menor. Mesmo porque é difícil decidir entre a rebelião e o autodomínio, ante a filha que está perdida em qualquer dos casos, porque, em última instância, o problema não é o capataz, é algo que o transcende, isto é, o sistema que o coloca em jogo.
Em Nós Matámos o Cão Tinhoso tudo está urdido com o intuito de evidenciar as contradições (coloniais, humanas, éticas, etc.) entre o Madala e o capataz (ou a filha), sendo parte do que acontece despido de ética e de humanismo, de coerência e confrangedor, mas irradiando ao mesmo tempo uma luz de esperança (ligada à vida e esforçando-se por modelá-la) e de recordação (de que ainda somos humanos, saímos de certo “foyers” cultural, irradiamos desejos, sonhos, e que estamos indestrutivelmente ligados ao instante presente, ao instante vivido, etc.). É assim que, assumindo o que Lukács (s/d: 133) diz em outro lugar, “por intermédio de um notável e melancólico paradoxo o fracasso se torna a origem do valor, a consciência e o vivido daquilo que a vida recusou, a fonte mesma de onde parece jorrar a plenitude da vida”. Não é por acaso que é do ponto de vista da subjectividade presente, em Nós Matámos o Cão Tinhoso, que a memória apreende a discordância entre a realidade e os seus sujeitos, entre a ética e a esperança que são forjadas e a partir dos quais a obra da forma ao mundo de papel.
Os contos, na sua estrutura objectiva, doam-nos um mundo que revela totalidades heterogéneas que são regidas por princípios, normas e protocolos imanentes cuja ocorrência é apenas pressentida e não dada. Assim, conferindo-lhes a dureza e a serenidade que o efeito de real encena. É realmente essa victória sobre o anti-ético, o desumano, única no seu género, que faz de Nós Matámos o Cão Tinhoso uma inimitável combinação de frescura e actualidade poderosa. E que, nunca mais se voltará a repetir, até porque separa dois momentos da história da literatura moçambicana.
O que aqui acabamos de verificar, o concurso de contos de Nós Matámos o Cão Tinhoso e o realismo nele fortemente encenado, nos compraz a desfrutá-lo e a acordar o nosso gosto sensorial. Afinal, o seu estilo “possui amiúde algo de demasiado sensorial , e o seu realismo, às vezes, algo de fortemente pesado”, como diria Auerbach (2018: 216). Que tal e qual como o romance medieval vai pedir emprestado ao cristianismo os seus motivos conceituais e artísticos, recebendo um reforço da tradição bantu e da livresca.
O realismo em Nós Matámos o Cão Tinhoso é justificado pelo facto de haver, a essa altura em Moçambique, uma elite intelectual e de assimilados, que tinha um forte pendor de esquerda, ainda porque, já nessa altura, a Frente de Libertação de Moçambique já existia e a Luta de Libertação Nacional andava a espreita. O que reforça em si esse carácter.
Do ponto de vista estético tal como no plano da história, Nós Matámos o Cão Tinhoso situa-se entre estes dois tipos de estruturação: o tema é a humanização do homem oprimido (negro, problemático, etc.) – dirigido por um ideal que é para ele experiência vivida – em relação com a realidade concreta e social. Sendo forçado a procurá-la à custa de difíceis combates e de penosas situações, vendo-se a alma compelida a apoiar-se em si mesma e na esperança para evitar que a sua subjectividade não se estiole ou degenere. A consequência disso é que a alma supera a sua solidão, e aspira a viver não na contemplação apenas, mas igualmente na acção, acção inteligente para exercer uma influência eficaz sobre a realidade.
Semelhante relação entre a alma (espírito) e o ideal relativiza a posição dos protagonistas nos contos, em Nós Matámos o Cão Tinhoso, que não é mais que contingente; pois é assim situado “porque é na sua busca que se manifesta mais claramente a totalidade do mundo”, no caso, colonial, porque, afinal, “trata-se aqui apenas de um meio mais para pôr a claro o carácter depravante da realidade”, como diria Lukács (s/d: 143-144).
É no fracasso necessário de toda a interioridade que cada destino singular não constitui senão um episódio, sendo o mundo (colonial) feito de uma soma infinita de tais episódios, heterogéneos, que só têm como destino comum o fracasso necessário. E é essa comunidade de destino que cria uma ligação mútua e íntima entre as personagens individuais. É por isso que se trata aqui, muito ao jeito da tipificação que Lukács dá a certa tipologia de romance, daquilo a que podemos chamar de contos de educação. Pois, ocorre neles, tal como no romance de educação:

um processo consciente e dirigido orientando-se para um fim determinado, o desenvolvimento, nos seres [leitores] , de certas qualidades [cognitivas] que, sem uma activa e feliz intervenção dos homens e dos acasos nunca viriam a desabrochar neles; porque aquilo que é alcançado desta forma constitui uma realidade capaz de formar outros homens e de favorecer o seu desenvolvimento, um meio educativo. (Lukács, s/d: 144)

A estratégia de figuração, em Nós Matámos o Cão Tinhoso, não é, de forma alguma, para mostrar “a imobilidade a priori de um mundo preso a uma ordem; é antes a vontade de formação, vontade consciente do seu fim””que nos contos surge representado pelas personagens incapazes de se adaptarem aquele estado de coisa, embora meçam o perigo que os ameaça, “perigo em face do qual existe sem dúvida para cada um, um caminho individual, mas não uma salvação assegurada”” (Lukács, s/d: 144).
Assim, tal como Lukács (s/d: 145) sugere para o romance, nestes contos, o sentimento de força e de poder que se exala deles deriva da relativização da personagem central, pois esta não pode realizar sozinha o que só a comunidade de destino pode realizar, sem partilhar o seu destino e impor a vida estruturações comuns, sendo esta possível só no campo do compromisso. Por isso, a subjectividade destas personagens é tendencialmente simbólica, e faz estalar a consciência do sujeito oprimido, ainda que estas, nas suas singularidades, assumam um carácter puramente pessoal o seu destino, isto é, a maneira particular que cada uma consegue resolver o seu conflito com o mundo dado que o rodeia, e faz sentir a ausência de força e poder de uma maneira tanto mais desagradável quanto em cada instante esse aspecto se apresenta com a pretensão de dar forma a semelhante totalidade. Permeável, contudo numa certa medida, uma significação viva.
É por aí que se pode ler, hoje, Nós Matámos o Cão Tinhoso de Luís Bernardo Honwana, pois a ironia ganha aqui uma importância decisiva enquanto factor estruturante da obra, até reforçada por ambiguidades que atravessam o(s) tecido(s) do(s) texto(s), porque, afinal, à realidade não é portanto senão um estado intermédio. Uma vez que se trata pura e simplesmente de coisas do dia-a-dia das personagens. Honwana torna claro que não se trata aqui, de maneira alguma, de acasos, mas de uma comunidade a priori de tendências: a das personagens. E é por isso que, do mesmo modo que o romance ou a narrativa de maior fôlego, o(s) conto(s) surge(m) aqui para representar uma unidade quebrada, daí nenhum deles efectuar uma síntese acabada e decisiva senão (n)o seu conjunto, que surge como restauração dessa unidade quebrada. Não é por acaso que só no conto “Nhinguitimo”, o último do conjunto, é que uma rebelião social se insinua, quando o medo se destapa, dando ao conjunto uma totalidade viva.
É mesmo necessário no livro a atmosfera colonial e opressiva, que se desdobra em fundo temático e coerente com os contos. E apesar do seu sentido estético-literário que sabe introduzir e fazer surgir de novo problemas na trama dos contos, Nós Matámos o Cão Tinhoso não pode escapar a consequência imanente da situação final. Para aí chegar, teve necessidade do aparelho estético-literário do jogo de ficção entre as lacunas abertas ou deixadas no e pelo(s) conto(s) e o(s) seu(s) indício(s), enquanto meios estruturadores do jogo ficcional, que entra como o não-dito, pouco a pouco, de maneira leve e irónica, sem as quais não teria podido dar uma significação sensível.
Essa superação em direcção ao romance e/ou a narrativa de maior fôlego mantém, apesar de tudo, a autonomia dos contos e não quebra a imanência da forma na medida em que, num ponto decisivo, dá ao mundo dos contos uma estruturação que os liga. Trata-se antes de um processo de criação da atmosfera colonial e opressiva, que se desdobra, como já dissemos, em fundo temático que atravessa todos os contos, por meio dos quais os contos se encontram ligados e dissolvidos, do que de uma superação do conto para o romance ou a narrativa de maior fôlego. Tal como se pode observar em Ualalapi de Ungulani Ba Ka Khosa, que encena essa ilusão de autonomia entre os seus capítulos, facto, afinal, que levou a um debate sobre a anatomia daquele texto, se era ou não um conjunto de contos, romance ou novela.
Nós Matámos o Cão Tinhoso de Luís Bernardo Honwana ocupa um lugar central no sistema literário moçambicano, pelas razões que acima evocamos e por se sentir nele a tendência de fuga a avidez ligada à falta de espiritualidade da sociedade colonial e de aspiração de uma utopia que se dirige a uma civilização capaz de se objectivar em estruturas sociais e que esteja à medida da subjectividade de sujeitos plurais e diversos, onde a ética começa no e pelo jogo de alteridade, seja embora pela situação particular entre a sociedade (colonial) e a ética, o sujeito e a (sua) subjectividade, ao mesmo tempo aclimatados pelo lugar do Outro. Análogo a qualquer nostalgia de uma realidade mais adequada, mais próxima da sua essência, ou do seu potencial de existência.

Bibliografia
AUERBACH, Erich. (2018). Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva.
HONWANA, Luís Bernardo. (1984). Nós Matámos o Cão Tinhoso. Maputo: INLD.
LUKÁCS, Georg. (s/d). A Teoria do Romance. Lisboa: Presença.
NGOENHA, Severino Elias. (1992). Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica. Porto: Salesianas.

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