TRAJECTÓRIA E SENTIDO DA OBRA-DE-ARTE-LITERÁRIA, DA CONCEPÇÃO À PRODUÇÃO

Escrito por Américo Pacule


Introdução

Este texto enquadra-se numa discussão um pouco mais alargada que temos estado a levar a cabo, intitulada, “Trajectória e sentido da obra-de-arte-literária…” cujo mote gira em torno dos processos de produção da obra-de-arte-literária, do momento da sua concepção ao da sua legitimação e do momento da legitimação ao da concepção. No presente ensaio restringimos o âmbito da discussão, indo do momento da concepção ao da produção, ou seja, a captação e análise da obra antes mesmo de vir a se tornar um produto acabado e posto em circulação. Preocupam-nos as formas conceptuais que tornam possível a obra. Como se pode depreender, a nossa empreitada não é propriamente a dos estudos literários, ela termina precisamente onde estes começam. É, com efeito, uma tentativa do inventário da fábrica, da maquinaria e do seu corpo de funcionários. É uma espécie de heurística da obra-de-arte-literária. – Um método da História em Literatura? Alguém deverá se interrogar. De uns tempos a esta parte tem vindo a surgir na literatura moçambicana um conjunto de autores que se singularizam por cultivar uma estética centrada na enunciação, no labor da linguagem em todas as suas dimensões, o que faz que, as tensões telúricas, ideológicas, culturais – apontadas por Francisco Noa – e temáticas que marcaram a geração precedente, mesmo quando aparecem, se apresentem nas suas obras como mero pretexto. Torna-se isso claro quando observamos as produções de autores da nova geração literária moçambicana. Entenda-se por geração literária, não um grupo de escritores unidos por faixa etária, mas por uma ideologia estética. Este entendimento permite que autores como João Paulo Borges Coelho – sem pretendermos nivelá-lo – se transformem em autores fugazes e incapturáveis. Do ponto de vista da sua idade, e até das suas opções temáticas e telúricas encaixa-se de facto na geração anterior, mas em já não se enquadra em termos do seu trato estético.
E há de ser, por hipótese, uma tendência universal não apenas da literatura, como da arte no geral, facto que acreditamos estar a ser coaptado pelo colapso das ideologias nacionalistas, pelo culto da globalização, ou, então, pelo fenómeno da democracia. Isto permite-nos interrogar-nos se não estaremos a avançar para a diluição das nacionalidades literárias à escala universal, à mudança do paradigma da poesis, enquanto mera subjectividade e espúrio. Ou para o nada? Estas questões não podemos responder aqui, e, portanto, a sua resposta, relegamos à posteridade. E a ser verdade, a futura teoria literária, para penetrar na hermenêutica destas literaturas, ver-se-á obrigada a volver os olhos para o seu momento “entes de Cristo”, estudando as respectivas obras no seu plano a priori, antes de as conhecer no seu domínio a posteriori, observando-as nas suas formas conceptuais, de modo a ver toda a árvore genealógica, e, sobretudo, as confluências genéticas que as tornaram possíveis. A nossa discussão assenta no princípio que preside a filosofia kantiana. Aqui, também, estamos em busca de uma teoria, que menos se ocupa da obra, que do modo de a conceber e a produzir, “na medida em que este deve ser possível a priori” Kant (2001:53). Como isso acontece, em que domínio tal se opera, é o que iremos ver a seguir.
Como deve ter ficado evidente, a ideia que defendemos aqui é que a obra-de-arte literária caracteriza-se por uma dupla condição de existência. A primeira, enquanto resultante do trabalho inteligível-ideal(1) da natureza espiritual do sujeito produtor, o conjunto das funções orgânicas do espírito, actuantes fora da sua consciência, domínio e controlo, interferindo, quiçá, no campo da sua própria liberdade da vontade, e, a segunda, enquanto aquela que provém do seu trabalho inteligível-empírico, ou seja, da natureza material deste mesmo sujeito, que decorre da força da sua vontade, controlo e da intervenção das suas mãos e do seu trabalho neurótico(2) e que pode, precisamente por isso, condicionar o seu processo de produção, escolhendo certos materiais em detrimento de outros, na medida do que ele mesmo concebeu, suspendendo-o, se quiser, e retomando-o num outro momento, ou, então, abandonando definitivamente o seu projecto.
Considerações sobre os pontos precedentes

(1)

O idealismo transcendental é, quanto a nós, a melhor e a mais avançada coisa que se poderia ter proposto no domínio da metafísica inaugurada por Platão. Foi Kant quem mostrou como efectivamente as ideias divinas chegam a se misturar com as vivências humanas, e como as vivências humanas abrem mão a esse pacto. Construiu até a fábrica, que é o que chamaríamos lugar transcendental, onde tal matrimónio ocorre. Importa, porém, mostrar como esse processo ocorre, o que nos obriga a fazer este inventário da fábrica que torna tal efectivo, o respectivo corpo de funcionários, isto é, os sujeitos – não um – que manuseiam os materiais dos domínios ideal e empírico para o domínio transcendental. Sendo, com efeito, neste último onde os mesmos se unem, partilham os materiais e produzem a obra, como é o caso da obra-de-arte-literária. E é, de facto, a obra-de-arte-literária, que, pela sua natureza, nomeadamente, o facto de ela ser resultado, como disse Platão, da imitação de uma imitação, e, como nós preferimos entender, da morte, destruição e reconstrução progressiva do mundo, que pede este espaço transcendental, onde decorrerá o intercâmbio dos sujeitos e dos materiais da sua produção. Daí que seria, para os nossos efeitos, prudente afirmar que a mente não traz formas e conceitos das ideias para o mundo da experiência, mas antes as produz consoante o plano ínsito no seu ser, como se este agisse em obediência às suas próprias funções orgânicas transcendentais. A mente produz a obra a partir do que ela mesma concebeu. Não imita uma realidade exterior, mas a si mesma. Poderemos, um dia, estudar uma espécie de biologia do espírito humano, e, consequentemente, a medicina do espírito, cabendo a esta, fornecer-nos medicamentos para a cura daquela, em caso de apresentar doenças que impeçam o seu efectivo funcionamento, tanto para a manutenção da sua saúde, quanto para a sua faculdade de produzir obras a si inerentes.
As fragilidades ou virtudes dependerão, não do cérebro, mas do espírito enquanto faculdade de o sujeito transcender o mundo das ideias e das coisas, da inaptidão de o espírito produzir a obra por simples conceitos como se a projectasse em todos os seus planos, sem, contudo, a mínima intervenção do autor ideal, enquanto demiurgo platónico, e do empírico, enquanto a enteléquia aristotélica dos materiais. Que nome daríamos, então, a este autor? Recorrendo a uma terminologia kantiana, chamar-lhe-íamos autor conceptual-transcendental e tem as suas metamorfoses, desdobramentos e funções específicas ao longo do processo de produção da obra. Com efeito, um estudo da obra-de-arte-literária, mais do que se ocupar das formas estéticas materiais a posteriori, que é assunto do paradigma formalista, deveria também se ocupar da investigação das formas conceptuais a priori. Aquelas são aquilo que aos nossos olhos existe na obra e pode ser estudado, estas são aquilo que cria condições para que aquelas existam.


(2)

Kant, no seu Ensaio sobre as doenças da cabeça, considerou à possível deficiência que pode interferir neste plano como da ordem engenho para distinguir da deficiência de entendimento. Estas enfermidades, que ocorrem no domínio natural do homem, acontecem também no plano da cultura, nomeadamente, no processo de produção da obra de arte literária, podendo condicionar as suas qualidades ou defeitos. À primeira chama de paralisia e que resulta do próprio estado de saúde do sujeito produtor, a incapacidade da mente de memorizar, conceber alguma coisa e ser capaz de se lembrar disso, bem como a dificuldade de expressar apropriadamente. À segunda denomina imbecilidade, que resulta de uma deliberação seja individual, seja colectivamente. Nestes casos, o sujeito produzirá uma obra de qualidade questionável, simplesmente para ser fiel à sua consciência, ou ao contexto histórico, ideológico, cultural, antropológico do seu tempo e lugar.

Estas duas facetas da obra-de-arte-literária não são um conhecimento novo, o problema, porém, é que foram, por um lado, confundidos na obra, ou, então separadas, violenta e descriteriosamente. Foi este facto que deu azo ao nascimento de duas linhas paralelas, mas conflituantes da concepção da obra-de-arte-literária, a idealista e a materialista, ou, então, numa terminologia específica do campo dos estudos literários, a da arte pela arte e a da arte pela sociedade. Tratou-se, se nos for permitido assim dizer, de posições extremadas que resultaram de se não ter reflectido em torno da dimensão transcendental em que ocorre o processo de produção da obra-de-arte-literária, na qual também está instalada a respectiva fábrica e o seu corpo de funcionários. Resultaram também da depreciação da dimensão empírica da obra-de-arte-literária, por Platão, e consequentemente, o seu afastamento da classe das áreas de conhecimento consideradas racionais e úteis à vida. E, igualmente, da extremada visão instrumental aristotélica da poesia. A reputação que se atribuiu a estes filósofos criou condições para que a sua definição fosse um tanto quanto vacilante entre os dois domínios. O que nem o idealismo transcendental kantiano resolveria.

O processo da sua produção assenta em um princípio fundamental; nomeadamente, que em ambos os domínios resulta do choque entre matéria e energia, não obstante a matéria e energia que intervém no processo de produção de cada um destes géneros da obra-de-arte-literária sejam de uma natureza específica e diferente uma da outra, e, portanto, inacessíveis aos órgãos dos sentidos que caracterizam os sujeitos que operam em cada um destes domínios, embora, estes sujeitos estejam imbricados um no outro, produzindo, cada um, a sua obra com a infra-estrutura produtiva assente no domínio alheio, mais virado para os seus próprios propósitos. Pois, o produtor da obra-de-arte-literária produz movido por duas forças fundamentais. A primeira é o facto de ele estar habilitado pela essência da sua natureza a produzir uma obra-de-arte-literária no domínio do seu espírito, e essa obra deverá acontecer com uma total autonomia em relação à sua contraparte empírica. A segunda é atinente ao facto de estar habilitado a faze-lo consoante ele tiver certo domínio dos materiais, sabendo manuseá-los e misturá-los empiricamente, dos instrumentos de produção que seriam, entre outros, a linguagem. Neste domínio tudo dependerá de si, enquanto consciência, na hora de escolher alguns desses materiais. A necessidade de transição de um domínio para o outro, isto é, o do poder fazer e o do fazer exigirá que se estabeleça um intercâmbio comunicativo entre as duas faculdades, uma troca de experiências, justamente para permitir a produção da obra.

Este princípio, exposto nestes termos, desdobra-se em quatro postulados fundamentais. O primeiro considera que a sua formação e constituição devem dispor-se como um agregado ou simbiose de duas formas de existência; a forma conceptual ideal e a forma conceptual empírica, comportando, cada uma destas formas de existência, as suas subcategorias, as suas nuances, os seus desdobramentos específicos. No processo da produção da obra-de-arte-literária, a forma conceptual ideal e a forma conceptual empírica propriamente ditas nada mais são que meros pretextos ou aparências de algo que se encontra e actua ao nível da estrutura profunda da sua existência, seja esta tomada como material, ou como imaterial, pelo que, uma vez composta a sua fusão, a nova realidade resultante impõe-se como o arquétipo ou estágio primordial, de uma nova genealogia para outras obras-de-arte-literárias que se vão sobrepondo como que de forma imbricada e progressiva. O segundo, que surge como consequência do primeiro, assume que a sua concepção deve igualmente consistir em dois momentos ou processos, por um lado, o momento da concepção da forma conceptual ideal e o momento da concepção da forma conceptual empírica, por outro; o mesmo sucedendo com os respectivos processos de produção, que deverão desdobrar-se entre a produção conceptual ideal e a produção conceptual empírica, unindo as suas partes. O terceiro e o quarto postulados dizem respeito aos respectivos sujeitos produtores da obra-de-arte-literária, visto que devem, igualmente, ser capazes de conjugarem em uma dualidade existencial, a do sujeito produtor ideal e a do sujeito produtor empírico, podendo também, no exercício não apenas da concepção e fabricação da obra, mas também da sua auto-concepção e auto-produção se abstraírem em funções e competências, e só depois, unirem os seus resultados, visto trabalharem para uma finalidade comum.

Não nos parece razoável a ideia platónica de arquétipos imanentes, que alimentam uma linha de produção das coisas, incluindo a literatura, e que vai servindo como um santuário inquestionável, nem a ideia aristotélica de uma primazia material. Somos do entendimento de que no processo de produção do mundo e de todas as coisas, as ideias são, num primeiro momento as madres da matéria, mas esta, uma vez existente, evolui e atinge um estágio de perfeição que lhe permite ser tomada como modelo de produção paralelo e desafiante à ideia de onde ela deriva, mas imediatamente se destroem em obediência às leis da natureza, ou, se não quiser se admitir isto, ganham a sua autonomia e reivindicam o direito de cidadania como “modelos paralelos” da produção. E isto é tão evidente no plano de produção da obra-de-arte-literária.

Vejamos como esta genealogia acontece. A ideia desdobra-se em conceito da ideia da obra-de-arte-literária, e esta evolui até atingir a sua perfeição e se juntar à sua contraparte da matéria. Produz-se a obra, e, depois, produz-se o seu conceito. E este orienta a produção de outras obras-de-arte-literária, ao seu pleno esgotamento. E a obra interpõe-se e obriga o conceito da obra-de-arte-literária a se reformular. Aqui as obras e as suas ideias nascem e entram em destruição, e se tornam matéria para novas obras.

Porque, embora, de acordo com o conhecimento que temos, a obra-de-arte-literária, seja constituída por elementos objectivos imediatos, os seus elementos literários, o discurso em todas as suas nuances, e os extraliterários, o papel, a tinta, os aspectos gráficos, incluindo o próprio contexto histórico e ideológico, a sua constituição intrínseca, enquanto obra de arte ou de labor humano, não é apenas da dimensão da matéria enquanto tal, enquanto a que está ao dispor do sujeito produtor, mas daquilo que este, impressionado por essa matéria, concebeu. Há, como se pode depreender, uma sobreposição da obra-de-arte-literária, a primeira saindo do domínio ideal e outra partindo do domínio material e tal sobreposição acontecerá algures num dos pontos da trajetória, onde produzir-se-á uma obra sintética. Esta obra sintética, uma vez concluída, vai imediatamente sofrer um processo fragmentação por cissiparidade, movendo-se cada uma das partes de volta para os dois pontos de partida, com novas informações a cada um dos domínios. É para evitarmos o exagero de raciocínio que não concedemos a esta obra sintética, com as respectivas entidades produtoras, uma existência ontológica peculiar, o que significaria que as duas obras derivadas da sua fragmentação corresponderiam a uma quarta e quinta existência.
Esta cisão por cissiparidade e retorno que ocorre no processo de produção da obra-de-arte-literária fornece-nos luz para a solução do diferendo platónico-aristotélico na forma como concebiam não apenas a poesia, neste caso a obra-de-arte-literária.

Expliquemo-nos: Há uma obra-de-arte-literária que sai do mundo das ideias, com um leque de coisas, em formas conceptuais, que vão perdendo perfeição ao longo do percurso, e existe uma obra-de-arte-literária fundada no mundo empírico imperfeito, nos seus materiais grosseiros, que caminha em direcção ao mundo das ideias, e que vai ganhando perfeição ao longo do percurso. Estas obras, ao se encontrarem num ponto intermédio do percurso, se cruzam e trocam o material genético. Depois, fragmentam-se e retornam, cada uma, por sua vez, para o ponto de origem. A que vem do mundo empírico, voltará acrescida de noções de perfeição para o mundo real, onde reside o autor empírico e será, então, a vez deste de produzi-la, com menor risco de torná-la tosca e desequilibrada, e dispô-la ao consumidor, enquanto ser social-empírico. A que deriva do domínio das ideias, carregará de volta noções grosseiras da matéria, onde reside o autor ideal para que possa, igualmente, produzir a sua obra e colocá-la ao consumo do consumidor como um ser social-ideal. A teoria literária até hoje é pobre nas suas faculdades de visão, vendo, conforme a divisão dos paradigmas em arte pela arte e arte pela sociedade, uma parte de cada vez, e nunca as duas em simultâneo.

E isso só faz que cada uma das obras de arte literária resultantes deste jogo simbiótico de gestação e produção perca no domínio das suas ideias, quanto no dos seus materiais, as suas características primárias, a sua essência, quando ela já tiver saído a lume enquanto produto final. Tal desperta tanto no produtor, quanto no consumidor uma certa ignorância ou cegueira em relação ao conteúdo semântico subjacente na obra, justamente porque eles mudaram de características, o que o obriga a resvalar para soluções heurísticas, no processo da sua reprodução e consumo. E há duas coisas interessantes que podem acontecer no espírito quando este é tomado pela ignorância: ou um olhar com preocupação, curiosidade, diante da aura projectada pela realidade estranha. Ou, então, um olhar de indiferença. No primeiro caso, o espírito pode julgar o objecto estranho destituído de conhecimento de causa, e por isso, com cautela. Ele cingir-se-á na aura projectada pela obra, sugar os seus sentidos, nem que para isso tenha que recorrer a outros domínios de saber, que não sejam tão afins aos dos estudos literários. Ou simplesmente não julgar. No saber não, já não se nos oferece estas duas possibilidades, mas apenas uma sensação entediante. Isto significa que a condição da obra-de-arte-literária é que desperte a nossa ignorância para que continue a ser objecto de estudo ou de mera contemplação. Para elucidarmos um pouco esta questão da perda das características dos materiais de ambos os domínios, assim que eles são transportados para o domínio transcendental, e como isso pode afectar o resultado final, e despertar a nossa ignorância, precipitando o reprodutor e o consumidor para estas duas situações, peguemos, a título de exemplo, a palavra “Água” que é o título do livro de João Paulo Borges Coelho. A palavra água, pode o espírito, tê-la concebido de um de diversos domínios do da realidade, como o da vida social, da física, da química entre outros. O seu sentido, portanto, explicar-se-á pela sua origem. Se o consumidor entender que é na física onde o espírito produtor concebeu a sua noção, será a partir desse ponto de vista que a vai interpelar a obra em todo o seu desenvolvimento da obra nos seus mais ínfimos detalhes. E ele deverá procurar discriminá-la de todos os outros sentidos que resultariam se ela tivesse sido concebida de outros domínios da realidade. Só com este procedimento é que podemos permitir-nos construir leituras racionais da obra. Para o caso desta obra, pensamos que a noção água foi concebida no domínio da física. Daí a obra procurar ressaltar a sua complexidade, os seus escorregadios ao domínio do homem, podendo, tanto beneficiá-lo, como prejudicá-lo.

Como se pode depreender do que ficou dito, a obra-de-arte-literária, neste momento, ainda não saiu ao domínio do seu produtor aparente, e para que tal se efective, precisará de cumprir um longo processo gestativo, de modo a atingir o grau necessário ao sujeito conceptual que o concebeu dentro dos padrões de tempo que a obra pede para o seu nascimento normal, não obstante, tal em muitos casos não aconteça, devido ao vício da vaidade e ansiedade artística. Mas, aqui, os riscos são evidentes, um sem número de obras-de-arte-literárias, nascem e morrem como se fossem partos falhados, e a sua longevidade, digamos por hipótese, será directamente proporcional à sua duração concepcional.

Isto significa que do ponto de vista da produção da obra-de-arte-literária, não soam razoáveis as concepções platónica e aristotélica, cada um agarrado na sua extremidade, de processos que caminham invariavelmente de um sentido para o outro. Podemos, em certa medida, admitir a concepção kantiana – que se impõe como o divisor das águas, segundo a qual, é da ordem das formas e conceitos que derivam das ideias para o mundo concreto da experiência. Mas discordaríamos desta ideia num outro sentido, que é este: Kant, com esta sua concepção, parece tratar com relativa delicadeza as ideias, e, por isso, pender mais para o platonismo e não se posicionar no domínio transcendental, como a sua teoria sugere, na medida em que as concebe como uma espécie de meros mapas cartográficos que nos permitem ler o mundo das coisas, ou, então, plantas arquitectónicas que nos permitem construí-lo. É como se o filósofo-crítico tivesse erguido uma grande infra-estrutura e, depois, a arrendasse aos outros. E será, com efeito, o processo de produção da obra-de-arte-literária, enquanto metáfora ou representação da destruição e reconstrução do mundo, que nos obrigará a encontramos um ponto de equilíbrio, uma síntese, um meio-termo entre a filosofia platónica e a aristotélica relativamente a esta discussão. Porque, como se tornou de domínio corrente nos fundamentos dos estudos literários, a arte, em geral, e a obra-de-arte-literária, em particular, vivem de elementos exteriores a si, elementos dos mundos ideal e empírico; mas, estes elementos, para que se configurem em nova vida no plano da obra-de-arte-literária, precisam de perder a sua vida antiga. E tal nova vida fará com que os elementos que concorreram para a sua composição transitem de um campo disciplinar de estudo para outro, com todas as consequências semânticas e semióticas, que obrigam a que, para a sua interpretação, se enverede por um método heurístico, como ficou explícito na análise do elemento água em João Paulo Borges Coelho. E esta obra-de-arte-literária, construída com base em materiais da destruição do mundo, entra, por seu turno, numa espécie de decadência que nos obriga a destruí-lo e a reconstruí-lo a partir do seu entulho, e assim sucessivamente. E é isto que coloca literatura em um ininterrupto devir. Ou seja, a obra-de-arte-literária construída a partir das formas conceptuais ideal e empírica, depois que ela passa à existência final, aquela à qual cabe ao autor empírico e o consumidor, perde automaticamente as suas condições iniciais, ela passa a constar no plano do mundo normal da matéria, não mais como obra-subjectiva, mas como obra-objectiva, passível de ser reduzida às mesmas formas conceptuais que concorreram para a sua construção, ou seja, capaz de ser destruída e reconstruída em novas obras com novas feições estéticas. São disso exemplo os jogos dialógicos e intertextuais a que recorrem autores como Léo Cote, Álvaro Fausto Taruma, Japone Arijuane. Haverá consequentemente um autor transcendental, cuja definição dispensamos para as próximas abordagens, colocado na condição de um Sísifo que não se cansa de carregar a pedra ao topo da montanha mesmo quando esta volta a rolar para a base.

Referências
Kant, Immanuel (2001). Critica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
COELHO, João Paulo Borges (2016). Água. Maputo. Ngira.
COTE, Léo (2012). Carto-Poemas, de Sol a Sal. Maputo. Associação dos Escritores Moçambicanos.

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