MARCELO PANGUANA: NÃO ESTOU PRESO A PRÉMIOS, A FICAR PARA A POSTERIDADE, A SER UM ÍCONE

Por Pedro Pereira Lopes

Marcelo Panguana (71) parece ter sempre um juízo sensato sobre as coisas, ou talvez não, mas não encovo a minha afeição pelo escritor e intelectual. Nome forte do Movimento-Geração Charrua, a sua expressiva obra, perpetuada em 13 livros publicados, percorrem 32 anos de carreira, disposta entre contos, entrevistas, recensões críticas e romances. Um maravilhoso infanto-juvenil, “Leona, a filha do silêncio” (com ilustrações do Luís Cardoso), ajunta-se à sua bibliografia. Há um Marcelo poeta, escrupuloso e admirável artífice da palavra neste ensaio sobre o silêncio, sobre a solidão, assunto que, afinal, sempre cultivou e nos fez ler.

Conheci o Marcelo na “Associação dos Escritores”, há quase uma dezena de anos, e tive o gozo de com ele trabalhar num projecto denominado “Catálogo das letras de Moçambique”, que reúne 50 autores, leituras sobre a sua obra e excertos. O livro não saiu mas a nossa cumplicidade floriu, tal uma das flores de seus jardins.

A minha vontade de entrevistá-lo – vontade ousada, não fosse o Marcelo um exímio entrevistador – era antiga, apenas concretizada nas primeiras horas de uma tarde de Maio de 2021, num café no bairro da Malhangalene. A rua tinha muito trânsito e já fazia frio. Preferimos tirar as máscaras, beber algum café e, depois, duas taças de tinto. Foi demorada. Marcelo, firme, respondia-me sempre depois de algum instante de ponderação. Encerramos a tarde falando da sua experiência editorial (Marcelo fundou e dirige a “Lithangu”) e de seus dois livros no prelo, um romance com um título brilhante (e não direi mais nada) e um novo livro de ensaios.

Pedro Pereira Lopes (PPL): Juntas-te à revista Charrua no seu segundo número, em 1984. Como movimento, achas que a “Geração Charrua” é imortal?

Marcelo Panguana (MP): Eu acho que os estudiosos de literatura, os pensadores da coisa escrita, tem essa grande tendência de querer sistematizar as porções literárias e gostam de estruturar as várias que vão existindo, ao longo dos tempos, em mais importante e menos importante, mais significativas ou menos significativas… Enfim, nós os escritores, quando escrevemos, não temos esta noção de sermos imortalizados ou não. A Charrua, as pessoas que fizeram parte do movimento, não tinham noção da importância que viriam a ter na historicidade literária de Moçambique. Por acidente, surgiram num tempo histórico em que era preciso subverter a forma de escrita então vigente; matar, entre aspas, aquilo que se considerou “literatura de combate”, e criar uma outra literatura capaz de mostrar os novos caminhos que as letras moçambicanas deviam seguir. Provavelmente, terá sido tal capacidade de subversão que fez com que os estudiosos chamassem o Movimento Charrua de um “movimento imortal”. Eu não sei se o será mas quem sou eu para pôr em causa ou para comentar sobre o assunto.

PPL: Trinta e dois anos de carreira literária não são pouca coisa. Preocupa-te o facto de não seres mundialmente lido?

MP: Eu acho que o grande objectivo de qualquer escritor é o de ser lido. Senão não teria sentido todo aquele esforço de preenchimento da página vazia, de rescrita e de pesquisa que envolvem todo o processo de escrita. Não teria sentido. O escritor tem todo esse sofrimento exactamente porque tem como objectivo satisfazer a apetência do leitor, que é chegar, que é sensibilizar, que é mobilizar o leitor. Então, se não é lido, há uma certa frustração por parte de quem escreve. Obviamente que eu gostaria de ser conhecido, de ser lido em todos os espaços geográficos. Mas não é isso que me move, quando eu escrevo, o meu primeiro objectivo é exorcizar os meus fantasmas. Satisfazer esta apetência que o escritor tem de todos os dias escrever uma história, contar, fazer um poema, metaforizá-lo, etc., este é o objectivo fundamental que me moveu ao longo da minha carreira. Eu sei que tenho o meu público. É pouco! Não sei se é pouco, mas satisfaz-me, de vez em quando, andar pelas ruas e ser reconhecido, ou alguém me dizer “Gostei do teu livro!”, satisfaz-me isto. Nunca tive grandes ambições de ser um escritor de grande gabarito, embora me satisfaça ler este ou aquele trabalho que reconheça o meu trabalho. Não estou preso a prémios, a ficar para a posteridade, a ser um ícone, não estou preso a isso. O que me interessa é escrever todos os dias e aperfeiçoar essa forma de escrita que eu venho desenvolvendo ao longo dos anos.

PPL: Por falar nisso, ouvi que o Heliodoro Baptista terá ficado bastante amargurado nos últimos anos de sua vida, porque ele se considerava tão genial e universal como o Neruda. Tu também achas que estás a par de algum génio universal?

MP: O Heliodoro Baptista (HB) foi um grande escritor. O HB tinha a grande capacidade de ser o escritor moçambicano com doses bastante interessantes de loucura e era essa loucura que o fazia muito especial, não somente a loucura mas a coragem de ser frontal diante do sistema político vigente, que ele sucessivamente criticava. Tal como o Neruda, ele se preocupava com o estado das coisas, isto é, ele estava sempre preocupado com as pessoas, com a forma de como os políticos deviam gerir as necessidades do povo. E ele, assim como o Neruda, era um insurgente. Ele tinha uma grande expectativa. Ele foi um dos poetas que muito lutou para que o país atingisse esta democracia que estamos a viver agora, e ficou anos depois profundamente frustrado quando descobriu que tinha lutado em vão, e isto fez com ele se tornasse um poeta bastante amargurado, um poeta voltado para si mesmo, um poeta fechado, com afirmações muitas vezes sarcásticas, e infelizmente ele terá morrido ainda amargurado. Eu não tenho os mesmos fantasmas, não tenho a grandeza literária que ele teve, eu não quero morrer amargurado. O meu patamar não é chegar lá, o meu patamar é estar aqui, neste chão, escrever para este meu povo, ser compreendido por este meu povo, e, se for necessário, ser idolatrado por este meu povo. Quem me quiser conhecer, que venha para aqui. Não tenho muitas ambições.

PPL: Aliás, o significa para ti carreira literária?

MP: É um caminho… (silêncio) que se percorre nesta difícil e penosa actividade de escrita. A carreira literária é o somatório de todas as realizações de um escritor, a nível de publicações, de suas intervenções sociais, a nível da sua importância na sociedade em que ele se insere… A sua importância para a educação, a atenção dos críticos literários, os prémios que venceu… isso tudo é carreira, para mim. A carreira literária será mais ou menos bem sucedida se este mesmo escritor ter tido um nível de trabalho, de escrita, que mereça atenção. É um pouco como todas as outras carreiras, de outras áreas de actividades, o escritor se realiza em função de sua escrita, do bom ou mau trabalho que conseguiu realizar.

PPL: Olhando para a tua vasta produção, “Os peregrinos da palavra” é o livro que te faltava publicar?

MP: “Os peregrinos da palavra” é um livro que sempre me interessou publicar. Em determinado momento me apercebi que, no sistema literário moçambicano, existem actores a quem nunca se havia dado a palavra para se pronunciarem sobre o seu processo de escrita, a forma como eles lêem o país, a forma como eles se lêem a si próprios, a forma como eles analisam a literatura que eles escrevem. Apercebi-me que ao longo dos tempos, os escritores que foram e são grandes intervenientes no processo de construção deste país, já não tinham “palavra”. A palavra foi sempre dada aos actores políticos, aos futebolistas e outros… os escritores quase nunca tiverem papel no actual processo de crescimento do país. Eles são os peregrinos da palavra e corriam o risco de serem, ao longo do tempo, marginalizados, considerados inexistentes, se eu não criasse este espaço, as entrevistas que fiz a cada um deles, no sentido de buscar imortalizar os seus pensamentos; vi, em todos eles, uma certa amargura pelo facto de terem sido parte activa na criação da moçambicanidade mas estarem a ser marginalizados. Então, considerando estes aspectos todos, eu acho que “Os peregrinos da palavra” é um livro, de certo modo, muito importante no conjunto dos livros que eu escrevi. É específico, é particular porque ele envolve conversas com outras pessoas que, como eu, faz da palavra a sua profissão.

PPL: Mas, cá entre nós, cá na nossa pátria, não é natural, parafraseando o Patraquim, que o escritor seja este “cão na margem”?

MP: O que o sistema e outros fazedores das artes devem evitar é, exactamente, essa marginalização. Se nós não evitarmos essa marginalização, não haverá crescimento, crescimento político, social, nem a do próprio escritor, porque a função fundamental do escritor é precisamente questionar. Questionar sempre. Não aceitar a marginalização. Aceitar a marginalização significa perpetuar o status quo, aceitar todos os dogmas dos partidos ou do sistema. Não nos devemos sentir cães marginalizados. Eu acho que nós temos que parar de ladrar pelas ruas e confrontarmos o sistema, no sentido subversivo, mas uma subversão positiva, para modificá-lo.

PPL: Sem medo…

MP: Sim, sem medo.

PPL: Falemos de poesia. “A solidão é maior quando a cultura vive aflita”, disse o poeta Eduardo White, e depois, “O artista se suicida em solidão, todos os dias”, disse ele numa carta que te escreveu. É-te natural a solidão?

PPL: O Eduardo White (EW) foi uma das pessoas que simpatizou com um texto que eu escrevi, “Solidão do artista”, que é um texto que me persegue, que eu publiquei, pela primeira vez, na página que eu tive o privilégio de coordenar, a “Xipapala”, e logo a seguir eu recebi, da parte do EW, elogios bastante comovedores, porque ele se sentiu tocado, digamos, sensibilizado pelas palavras que eu escrevi. Ele sentia-se irmão gémeo deste texto pois considerava que, apesar de tudo, o escritor, o artista, é um ser muito solitário. Eu dizia que é um texto que me persegue porque mais tarde resgatei-o para o livro “Escrever a terra” e continuei a receber elogios. O mesmo texto fará também parte do meu novo livro de ensaios. É como se fosse uma espécie de mascote que eu coloco em todos os meus livros no sentido de não deixar fugir esta ideia de perseguição pela solidão.

PPL: Então, a solidão é o teu amuleto?

MP: Eu acho que sim. Eu acho que sem a solidão, o trabalho do artista não se realiza, porque é na solidão que o pintor procura os contornos mais precisos para a sua tela, o poeta procura a metáfora mais verdadeira para o seu poema, o prosador procura o capítulo mais elucidativo da história que ele está a contar.

PPL: “Na literatura corre-se sozinho e muitas vezes nunca se corta a meta” (em entrevista ao jorna a Verdade, 2011). É um pouco sobre isso?

MP: Quando afirmei isso eu estava a tentar ser solidário com determinados artistas, neste caso, escritores de alto gabarito, que ao longo dos tempos foram escrevendo coisas maravilhosas, foram publicando livros de grande alcance, que foram erguendo o estandarte da literatura nacional, mas que nunca foram reconhecidos. Nunca chegaram a cortar a meta. E que corriam o risco possivelmente de acabar os seus dias sem que isso tivesse acontecido. É uma espécie de solidariedade a esses artistas que convivem connosco, fazem parte do nosso mundo, continuam a correr todos os dias, mas o reconhecimento tarda em bater-lhes a porta.

PPL: Por falar no White, o Marcelo escreve, no livro de ensaios “Escrever a terra” (p. 135), cito, “Faz-me bastante falta o Eduardo White e todas as palavras que ele proferia.” É óbvio que a troca de mimos revela uma relação funda, morna, além da irmandade possível através das palavras. Como o White, e como esses autores a quem o Marcelo se solidarizava, consideras-te um escritor incompreendido?

MP: Eu considero-me um escritor que nunca escreveu as palavras necessárias que fizessem com que eu fosse compreendido. Eis a grande questão. Muita vezes nós colocamos na sociedade a culpa de nossa própria incapacidade de comover. Todo o bom escritor é aquele que tem grande capacidade de comover. De seduzir. De partilhar e de ser reconhecida essa partilha. Nesse sentido, eu acho que se a sociedade não me compreende, não me reconhece, é porque nunca tive, em todo o meu percurso literário, essa grande capacidade de sedução.

PPL: Economia do sucesso vs glória literária: o que te dizem estes conceitos?

MP: A glória é uma palavra que devia ser excomungada de todo o discurso literário. A glória não tem absolutamente nada a ver com a literatura, com o discurso do escritor. Eu tenho muita pena dos escritores que pensam muito na glória. Pensar na glória significa pensar na satisfação desmesurada de ambição. O escritor não pode pensar assim. Glória é “estar acima de”… e o escritor nunca pode “estar acima de”… o escritor tem que estar. A glória faz com que, em muitos casos, comece a existir, nas instituições literárias, entre os escritores, bastante azedume, lutas, subversão de moral, à procura pela glória. A glória faz com que se escamoteie o sentido dos prémios literários, por exemplo, a sede pela glória faz com que se comprem ensaístas capazes de transformar um péssimo escritor num ícone de um determinado sistema literário…

PPL: E os jantares com jornalistas…

MP: Também (risos). A glória é um péssimo aliado do escritor. Economia do sucesso? Sucesso literário? Eu sempre tive muita dificuldade em falar de economias. Economia de um país… Não sei o que é…

PPL: Pressão editorial, escrever para o mercado, demandas do público, marcas de estilo…

MP: Qualquer escritor tem uma marca. Eu leio um trabalho ou frase tua e sei que és tu. Estilo é o que falta no nosso meio literário, ainda que eu pense que estejamos a produzir a melhor poesia dos PALOPS. Ainda hoje vi uma entrevista de um poeta cabo-verdiano e ele mencionava alguns poetas de Moçambique que ficarão para a posteridade. E falou do estilo, que é o que caracteriza cada um deles. Temos bons poetas e muitos sabem escrever, mas há um excessivo labor da palavra, excessiva metaforização, e cada vez que isto acontece há uma fuga na comunicação que se busca estabelecer com o leitor, e uma fuga no esforço que o poeta devia empreender para criar um estilo próprio. O resto quase que não se aplica no nosso meio.

PPL: Há pouco tempo, Ngungunhana era um óptimo mote literário. Não achou que seria um bom momento para relançar “Os ossos de Ngungunhana”?

MP: Sabes que eu pensei nisso. “Os ossos” fazem parte de um conjunto de textos. Então, a minha ideia era retirar o texto e rescrevê-lo como uma grande novela, como me sugeriu o Calane da Silva. Mas, provavelmente pegarei na tua ideia, em memória ao meu grande amigo Calane, e também para satisfazer o teu desejo. Como não tenho nada novo na mesinha de cabeceira, a escrever, acho que pegaria nisso. É bem provável que para o ano ele esteja pronto e eu tire o livro. Estás a dar-me uma ideia bestial.

PPL: É um bom título para um livro…

MP: Sim. Espero não entrar na área que se pretende que seja de exclusiva pertença de alguns escritores daqui da praça (risos). Ficarão chateadíssimos.

PPL: Em entrevista ao Frederico Jamisse, afirmou, “O escritor moçambicano não se limita apenas a escrever, também deve se exercitar a ser um pedinte”. É uma triste realidade, esta…

MP: Sim. Recordo-me de uma entrevista que o Mia Couto concedeu a um órgão que já não me ocorre, onde ele dizia que umas das coisas mais atrozes que pode existir é bater a porta aos possíveis patrocinadores de uma obra literária, e que ele estava cansado de fazê-lo, e que provavelmente nunca mais o faria. O Mia estava a ser porta-voz do que está a acontecer a muita gente. Bater portas que nunca se abrem, bater a porta para ouvir a voz altiva de um empresário qualquer a dizer que “É muita pena não poder patrocinar o livro!”, que ele julga que é muito interessante, e tu teres que repetir sempre este exercício para ouvir sempre as mesmas palavras. Isto é, o escritor sofre duas vezes, para além de sofrer no acto da escrita, tem que se transformar num pedinte e a ajoelhar-se perante pessoas que se calhar até sentem grande prazer em nos humilhar. Se calhar por causa disso exista muitos escritores com originais nas gavetas e que tardam a sair porque não se entregam a este processo de humilhação. Antes da pandemia, não havia dinheiro, hoje a pandemia é a justificativa.

PPL: Já agora, um escritor nasce ou faz-se? Esse tal “vírus da escrita”…

MP: As duas coisas. Na história universal, nós temos casos de pessoas que, na tenra idade, sem muita experiência, sem nenhum percurso social, se assumiram como grandes actores artísticos. E sem nenhuma vivência. Por um motivo qualquer que não sei explicar, eles eram artistas antes de terem a capacidade de conhecer o mundo. Há outros que se foram fazendo de acordo com as circunstâncias sociais… E eu recordo-me de um grande escritor moçambicano que disse que se tornou escritor quando começou a ler algumas obras literárias, e ele disse que “Também quero ser como estes senhores!”, fechou-se durante alguns anos, a ler, e depois começou a escrever. A escrita dele foi, digamos, uma confluência de todas as suas leituras absorvidas. Então, ele não nasceu escritor, fez-se em função de suas influências e circunstâncias. Alguém também dizia, um artista plástico moçambicano, quando o perguntaram acerca do seu talento, e ele negou, que era fruto de 90% de trabalho e 10% de criatividade. Então, eu penso que esta pergunta é uma rasteira muito grande que os jornalistas fazem. Acho que as duas coisas podem acontecer. No meu caso, eu fui “produto do meu padrinho”. O meu padrinho que me deu o nome. Ele chamava-se Marcelo Caetano Mbeve… quando eu tinha dez anos, eu ia à casa dele, perguntava por ele e diziam-me que ele estava na biblioteca. Por aí na década 60 e 70, ele ficava numa sala cheia de livros, numa cadeira de baloiço, o que era muito raro, numa sociedade colonial, entrares na casa de um negro e encontrares uma biblioteca como aquela. Então, sempre que eu ia lá, ficava fascinado. Ele não gostava de ser incomodado de tal modo que me obrigava também a ler. Depois, ir lá começou a ser um vício. Em segundo lugar, na minha casa abundavam revistas bíblicas. A minha família era muito religiosa. Então, eu lia tudo aquilo. Também frequentei a casa dos Honwanas, do pai do Luís Bernardo Honwana, para visitar aos meus amigos, o falecido Fernando Honwana, o João Honwana, que eram meus vizinhos. Eu ia sempre lá e encontrava o velho Raúl Honwana sentado, a ler, sempre a ler, e eu ficava espantado mas achava que a leitura teria então uma coisa transcendental e pedagógica que eu devia procurar. Eu fiz-me. Fui me fazendo.

PPL: Marcelo, vamos supor que tens uma outra oportunidade de recomeçar. De reincarnar ou renascer ou ainda de ter uma outra vida num universo paralelo qualquer. Serias outra vez escritor?

MP: Gostaria de ser jardineiro.

PPL: Porquê?

MP: Eu sempre tive uma sedução pela natureza, pelo verde, pelas cores todas… Pela capacidade de plantar… Não sei de onde é que partiu, mas eu sou muito mais criativo a criar jardins, a plantar, a ver germinar, a sentir-me realizado com tudo isso. Eu seria um belíssimo jardineiro até porque jardinagem é um acto de criatividade e um bom jardineiro é como um bom escritor.

PPL: E por que não escritor uma outra vez?

MP: Porque ser escritor, em certos momentos, significa ser dependente de pessoas, instituições, de sistemas. Ser escritor, de certa maneira, corta um pouco a liberdade de nossa criação. A jardinagem é um acto de liberdade pleno perante a natureza, dás-nos uma sensação de aproximação mais real de deus, da natureza, do perfume, da sedução das coisas…

PPL: Um acto revolucionário contra o karma…

MP: Sim, é por isso que eu gosto da palavra “revolucionário”.

PPL: Disseste ao Oceanos que Moçambique está, actualmente, a produzir uma das mais interessantes literaturas africanas em língua portuguesa. Queres com isso dizer que confiarias, à nova geração de escritores, a missão que um dia foi a dos charrueiros?

MP: Eu recuso-me a rotular a Charrua como o princípio e o fim de tudo. Eu recuso-me a isto. Mas eles não foram o princípio. Nós não fomos o princípio. Eu acho que esta geração tem o condão de ser mais lúcida, de ter bebido aquilo que nós, naquela altura, não bebemos. É uma geração mais viajada, fala muitas línguas, escreve com computadores, manuseia redes de informação, leu muitos livros, sofreu todas as influências, portanto, tem todas as condições para se fazer. Do meu ponto de vista, eu penso que eu era capaz de confiar, desde que ela não se esquecesse de manter aquilo que nós, a Charrua, sempre procuramos, criar e manter uma identidade literária.

PPL: Por fim, prosadores da nova geração…?

MP: Existem mas seduzem pouco.

Publicado originalmente no semanário “Ponto por Ponto”, edição de Quinta-feira, 27 de Janeiro de 2022, Maputo.

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