Leitor, uma espécie em perigo

Escrito por Álvaro Carmo Vaz

No ano de 2020, 61% dos portugueses não leram qualquer livro impresso e 27% leram apenas entre um e cinco livros. Os dados sobre os hábitos de leitura dos portugueses são bastante desanimadores quando comparados, por exemplo, com Espanha, onde o número de pessoas que não leu nenhum livro durante um ano ronda os 38%. E são preocupantes, afirma o investigador José Machado Pais.
O parágrafo acima inicia um artigo da CNN Portugal sobre um trabalho de investigação de José Machado Pais e Pedro Magalhães, da universidade de Lisboa, “Inquérito às práticas culturais dos portugueses em 2020”, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Este fenómeno (de se ler pouco) não é exclusivo de Portugal (embora os portugueses estejam neste capítulo bastante abaixo da média europeia), é mundial. Se é assim entre os países desenvolvidos, é muito pior nos países eufemisticamente chamados em desenvolvimento. Isto passa-se numa época em que se publica mais títulos do que nunca e quando a alternativa do livro digital se somou à tradicional versão em papel.
Sabemos que existe uma correlação forte entre a leitura de livros e os restantes consumos culturais. Um leitor de livros tem uma forte propensão para se interessar por outras práticas culturais. Por isso, todas as iniciativas de incentivo à leitura são bem vindas, seja nas escolas ou nos média. As desigualdades nas práticas culturais dos portugueses refletem as desigualdades existentes nos rendimentos, no nível de educação e na idade. Os mais velhos, os que têm menos escolaridade e os que têm menos rendimentos lêem menos livros, vêem menos filmes e espetáculos, visitam menos museus e monumentos e, de uma forma geral, consomem menos cultura. Fica claro também que, apesar de tudo, a escola tem um papel fundamental no combate a estas desigualdades.
Eu sou um afortunado, sempre vivi em casas com muitos livros, na minha infância e primeira juventude em Goa, depois em Lourenço Marques, agora em Maputo. Os meus pais gostavam de ler, tive professores no liceu que incentivavam a ler, colegas de liceu e de universidade que liam muito e que gostavam de conversar sobre livros.
Um amigo engenheiro contou que, certa vez, foi chamado a fazer obras de reabilitação em casas apalaçadas de uma grande instituição nacional e que, quando percorreu as casas para fazer os levantamentos necessários, deparou, a par de todo o luxo, com esta situação estranha: os bens pagos pelos administradores não tinham livros de ficção ou poesia – em lado nenhum, nem um só para amostra.
Um dia, não muito tempo antes de me reformar, dois estudantes do 3.º ano de Engenharia Civil vieram ter comigo para eu lhes emprestar alguns dos romances de que falava com frequência. Quando quis saber o que é que já tinham lido, se tinham lido Mia Couto, Paulina Chiziane, Craveirinha, disseram-me que nunca tinham lido um romance, um livro de poesia, uma peça de teatro, nada para além dos textos nos manuais de português do ensino secundário (onde os textos literários ocupam um quinto ou um sexto das páginas).
É verdade que os tempos são outros, a televisão e os telemóveis ocupam muito do tempo e da atenção dos nossos jovens. Eu, já nos setenta e razoavelmente conservador, acho que nem um bom filme substitui um bom livro (e os bons filmes também não abundam, abafados pelos Marvel e pelos fast and furious). Um bom livro leva-nos a outro mundo, a outra época, a outra gente, obriga-nos a sermos activos, a pensar, a imaginar, a pormo-nos na pele de gente que não conhecemos, convida-nos à empatia.
Em Moçambique, grande parte dos nossos jovens cresce em casas sem livros. A escola tem o dever acrescido de suprir essa falta, de levá-los a gostar de ler. Não podemos continuar a ter tantas escolas primárias e secundárias sem bibliotecas, sem dar aos estudantes acesso fácil a livros.
Dir-me-ão que, antes disso, é preciso investir em salas de aulas, carteiras, livros escolares. Estarão cheios de razão. Mas veio-me à cabeça uma história contada pela grande actriz portuguesa Maria do Céu Guerra, de quando ela esteve em Moçambique nos anos oitenta. Era a guerra, era a penúria, havia falta de tudo, bichas para tudo. E, num comício algures, Samora disse:
Nas vossas casas, nos vossos quintais, arranjem um cantinho e plantem flores.
Plantem flores – não falou em alfaces ou couves. Mesmo no meio da maior desgraça, Samora sabia-o, precisamos da beleza, do sonho. De livros, que nos dão isso tudo.

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