Esperança ou Mundzuko, o que quiseres

Esperança come caticalango e toma chá com açúcar castanho, na cozinha. O corpo ligeiramente avantajado distribui-se na cadeira plástica.
Seus netos trancaram-se no quarto, entregues ao videogame. “Busy”, estamparam na porta para garantir que nada os importune. A única que está na sala de estar escura por onde o sol espreita de algumas frestas é a Ayla que não tira a vista da tela do Xiaomi, seu rosto está iluminado, com o riso largo de uma paquera correspondida pelo crush.

O IPhone de Esperança vibra, a notificar uma nova mensagem no WhatsApp: perdemos o Ivo, o Calane, o Hortêncio, a Isabel, a Hermelinda. A lista dos que já não estão entre nós vai longa, pensa consigo mesmo. Suspira.

Num gesto mecânico abre a janela e sente o choque do ar quente que entra contra a força do ar condicionado, alimentado por painéis solares. Apressadamente fecha.

No mesmo grupo de WhatsApp alguém pergunta: “por onde anda o Mundzuko?”. De facto, apercebe-se Esperança, há dias que não recebe aquelas mensagens e vídeos engraçados que sabe-se lá onde o amigo de longa data vai buscar. Nos últimos dias, irregularmente, só trocaram mensagens de saudades dos 20/40 anos. Aos 68, Esperança não via nessa troca nenhum problema. Com a pergunta ainda a ecoar, o seu pensamento acaba envolvido num turbilhão: What? Mundzuko também? Não pode ser, foda-se! Mundzuko?

Teve alta ontem – alguém responde no grupo. Ufa – suspira Esperança -, tenho de ligá-lo, queria poder abraçá-lo. Mas poxa, queixa-se – como é que ele não me disse nada? Quando liguei antes de ontem disse que estava tudo em ordem.

“Neste momento não é possível estabelecer a ligação que deseja”, ouve do outro lado da linha. “Pode deixar uma mensagem para o Mundzuko irá retornar mais tarde”, responde aquela voz, que ainda é a mesma há décadas.

Esperança deixa mensagem no WhatsApp e copia a mesma para o Telegram. Desliga os dados móveis. Levanta-se e de imediato, a uns centímetros acima da porta da cozinha para o corredor que dá acesso ao resto dos cómodos, vê aquela foto da sua juventude quando o entusiasmo era seu aka. Mundzuko, ainda magro, como Esperança, na altura da faculdade. Foi numa das férias quando Mundzuko estava a estudar na Maxixe e Esperança em Maputo. A moldura preta não é capaz de traçar as fronteiras da relação dos dois.

Um riso se forma no seu rosto ao recordar que a imagem não carrega o peso de uma amizade da vida toda, de prolongadas conversas sobre sonhos e ilusões. E dos abraços das conquistas e das lágrimas das derrotas. Essas coisas clichês que marcam as pessoas.

***

No interior da cozinha, o sol espreita através das frestas, milímetros de folgas das paredes de caniço tecido com corda de tambeira, asseguradas por laca lacas, enquanto os simbires fazem os pilares do edifício coberto por macuti.

No chão de terra batida, ao lado da elevação de areia e escombros com restos de chapas de zinco a volta e outros paus a fazerem o suporte, onde se coloca a lenha para o fogo que cose as refeições, aquece a água do chá e do banho, está depositado um pote de barro que conserva a água gelada da família.

Naquele chão, as areias abraçam os meus pés descalços e tomam a forma do meu 39.

Os frangos repousam no canto, alegres, ignorantes do seu destino, como um certo povo. Numa estante de madeira de dois pisos repousam três panelas velhas sob tábuas de madeira de coqueiro. Mais próximo da parede de caniço, ao lado do simbire que faz o pilar, uma panela com a boca rasgada há vários anos, faz de conta está coberta com uma tampa ali posta. A outra panela tem path, no interior uma colher de pau farta de ser alimento de ratos.

Minha mãe acordou para preparar o banho. 5.45H. Cambaleio. Carrego o balde de água quente, dirijo-me a casa de banho com o sono a pesar os meus ombros, os joelhos, os músculos. O balde de, talvez, 07 litros, não é nada. Ao cruzar a mangueira, fora da cozinha, recupero a toalha posta num banco de madeira de coqueiro. Cruzo o quintal, rumo a casa de banho. – Está na hora, Esperança, tens de ir à escola. Teus colegas já passaram. Caíste? Vais atrasar, Esperança – grita a mãe. Ainda me assusto apesar do hábito diário desta rotina.

– Já saí! – respondo.

Vejo meu rosto no espelho que parti no quarto da minha mãe. Ela é vaidosa. Minha mãe sempre dá um jeito na desgraça. Temos flores no quintal, um jardim onde converso com as plantas, dou nomes as flores. O diálogo inclui as bonecas. Sou feliz ali. Noutras vezes invento cidades no chão que percorro com carrinhos a base de estojo de réguas, compassos, lápis e borracha.

Eu nunca soube desenhar. Gosto de histórias, de fantasia. Este plano (terreno) não é meu, sou incompetente, esbarro-me com as cadeiras, vacilo nos gestos, sou inconveniente e nisso, as vezes envolve grosseria por incapacidade de me dar com a circunstância.

– Esperança! – grita minha mãe, preocupada. – Já estou no quarto, a vestir uniforme – respondo. Estás a atrasar – insiste – os teus colegas todos passaram para te levar e te demoraste, já foram.

Estou de costas para a capulana que faz a porta. A toalha na cama…Doutro lado os casacos, fartos entre os cabides pendurados num pau que se suporta entre dois barrotes. A mala de palha perde-se entre as peças penduradas, dando a impressão que ali apenas existe a de madeira, cheias de uma vida. A minha mãe é um tipo de pessoa que se guarda em álbuns de fotografia, cartas e roupas também.

Esperança

30/01/2050

***

Está no quarto há algum tempo, umas quatro horas, talvez. Reactiva a net. Entra no Facebook. Encontra o Mundzuko no café do Metaverso, pelo caminho cruzou-se com a neta, sentada num jardim ali perto com o novo namorado. Animado, conta que voltou a escrever memórias. Um dia te mostro, promete Esperança.
Ouve-cá – retém a palavra Esperança – qual foi a cena de cortares as minhas chamadas de vídeo quando estavas de baixa?
Quero que te lembres de mim vivo, quando me for embora – responde Mundzuko sem perder de vista o texto – E epah, tens de mandar essas tuas tretas de memória no grupo do WhatsApp.

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