Beleza e crítica social em O Parto dos Rios, de Pedro Baltazar*

Por Irene Mendes, PhD

É um enorme prazer estar a apresentar O Parto dos Rios, da autoria de Pedro Baltazar, embora eu ache que uma obra literária e, em particular, uma obra de poemas, não deveria ser apresentada, mas apenas lida uma vez que cada leitor faz a sua própria leitura.

O que salta à vista ao primeiro contacto com O Parto dos Rios, é, obviamente, a sua capa. Esta reflecte o título da obra ao exibir um rio com formas de uma mulher grávida, deitada de costas, com uma perna esticada para cima e a outra dobrada, sobressaindo a criatividade imaginativa do autor da capa.

Ao começar a folhear o livro, deparamo-nos com uma obra poética com 76 páginas, dividida em três grandes partes ou cadernos: Madrugada no Lúrio, Pôr-do-sol no Save e Amanhecer no Zambeze.

Em toda a obra, cruzamos com um sujeito poético lírico, mas também bastante atento aos fenómenos do dia-a-dia e, sobretudo, muito crítico.

O primeiro caderno, designado “Madrugada no Lúrio”, reúne 12 poemas que abordam variadas temáticas, desde os contrastes sociais, mostrando o lado observador do sujeito poético, através dos versos: “Uns já ganharam o dia./Outros ainda comem pão com badjias de feijão nhemba”, passando por uma série de denúncias. Estas podem estar relacionadas à corrupção: “Os cobradores dos chapas-cem comem frangos fritos/roubados do casaco do patrão” e “Os bancários atiram os juros roubados do povo para/os bolsos dos banqueiros.”, mas também podem estar associadas à violência doméstica: “O ardina exibe a mama da Lila que o marido cortou com um machado de cabo”. A denúncia estende-se à traição e ou à infidelidade através do generalizado fenómeno Dia do Homem: “Quando chega a sexta-feira,/os homens não hesitam,/dormem no tecto de Malhampsene,/e de faca afiada para cortar as carnes tenrinhas da Margarida” no poema “A última que morre” (11).

O sujeito-poético também nos confidencia sobre os mistérios da noite, que podem “ancorar a ansiedade” (Noite ancorada, 14); remeter para a escuridão: “Sou escuridão, para muitos”; ser um espaço para segredar: “Sou o segredo, para poucos”; esconder choros dos velhos: “Sou o choro da calvície e das rugas, como os velhos/Eu sou a noite!” para revelar a degradação: “Sou as meias rotas dos operários/As cuecas desbotadas dos motoristas” e também para mostrar a bajulação (o lambe-botismo): “Sou a escova de dentes dos políticos”(Eu sou a noite, 17).

Delicia-se como cantar dos pássaros: “Os pássaros cantam/o mar se agita”; “Os pássaros ainda cantam,/o mar ainda se agita” (Nunca falha, 15) e está atento à natureza, quer como força destruidora: “Nós,/de Chamanculo,/ouvimos o vento quando ainda sobrevoa o Índico,/sentimos a tempestade quando ela ainda só se digladia com o mar/conhecemos a fúria das chuvas pela cor do vento aos nossos olhos”; “Nós,/de Chamanculo,/vimos as trovoadas pelas acácias de Xilinguine,/os vapfana não dormem nas noites de relâmpago,/e quando temos dúvidas sobre qual será a próxima tempestade,…” (Os ventos de Chamanculo, 16); quer como cúmplice do amor: “Vou conversando com o vento, a terra, o sol, a lua, o mar e o céu. (Conversas de tesão, 20).

Mostra uma especial simpatia pelo embondeiro: “São elas as folhas do embondeiro./São elas as primeiras que o apanham na estepe e na savana” (São elas que alimentam a tribo, 21); “embriaguei-me com o teu perfume,/com a tua lama,/e com os embondeiros das tuas nádegas africanas” (Saudades de ti, Angola, 23). Exalta o Kwanza: “Ó, Kwanza,/Vi-te pela ponte,/que pariste das mãos de muitos mortais,”; “Sinto-te,/ó Kwanza,/como se fôssemos gémeos dos mesmos crocodilos,/feiticeiros das tuas madrugadas ensolaradas.” (Saudades de ti, Angola, 23) e tranquiliza o Umbeluzi, ao mesmo tempo que o exorta: “Não te enciumes, Umbeluzi!/Por deliciar-me com o Kwanza, teu irmão./Continuas a ser quem afoga a minha sede”; “Não te acanhes, Umbeluzi!/Alimentas as mandioqueiras dos famintos.” (Umbeluzi, 24).

O segundo caderno, “Pôr-de-Sol no Save”, integra 16 poemas que põem a nu o lado lírico e intimista do poeta, ora ao declarar amor à amada: “À medida que me perco neste sono/o aroma do cansaço agrada as minhas têmporas,/e caio no sono,/tal como o meu amor por ti”. (Sono do amor, 33); “Contigo sou sempre,/a manhã a nascer,/a tarde a brilhar,/a noite a dormir.”; “Onde quer que eu esteja,/aonde quer que eu vá,/levo comigo a lembrança,…” (As minhas manhãs de silêncio, 36); “Quão mansinha e amorosa acordas,/desertando do teu lado na cama/onde em silêncio só tu moras” (A minha vizinha, 40); “Olho para ti,/mais me convenço que os meus olhos vão começar a ver” (Amor à primeira vista, 45); ora ao prometer ser melhor: “Gostava de ser uma pessoa melhor para ti./Gostava que me conhecesses melhor./Gostava que me visses mais e melhor.” (Juro palavra de honra, 39). Ainda neste caderno, se realça a força da mulher “Mar, abelhas e eu,/somos pequenos demais para o teu estábulo, mulher.” (O teu cheiro de mulher, 34).

O sujeito poético, por vezes, demonstra dúvida/incerteza: “Será que ela algum dia notou,/que eu e ela somos a mesma madrugada?” (Meia-noite, 41). Outras vezes, chega a implorar: “Ensina-me a nadar no teu oceano,/Semazita,/Não me deixes afogar.” (Semazita, 47) e, outras, ainda, lança gritos de socorro: Preciso de ar,/de muito ar,/de muitos verões./Há muita poeira” (Nhandayeyo, 42). Sente necessidade de reafirmar o homem que é: “sinto que o mar temperou,/as minhas costelas,/e toda a minha espuma,/e fez de mim o homem que sou.” (Homem que sou, 32).

Neste segundo caderno, vemo-lo também a assumir-se como representante de dois grupos: artista e soldado: “Esculpi estas palavras/eu, o artista dos meus próprios pesadelos,/pintei o cacau,/eu, o pintor dos sonhos de marracus/cantei com a minha voz de soldado” (A palavra, 31).

O último caderno, intitulado “Amanhecer no Zambeze”, apresenta14 poemas com temas bastante variados. Alguns poemas continuam a destacar o seu lado lírico e intimista quando se entrega e declara ter encontrado um porto seguro: “Em ti encontrei o porto deste destino,/verti a savana,/e acordei as minhas formigas.” (Cá estou, 52); quando coloca à sua amada num pedestal: “Tu és a coroa do meu império,/o império dos meus dias e das minhas noites” (Minha coroa, 61),quando dialoga com a noite: “Onde estás?/Ó noite!/Vem dizer-me como posso ser dia./para a chuva te molhar.” (Deusa Noite, 62) e quando se assume um destroço” (Destroços, 54) e quando expõe os seus desejos carnais: “Converso com a bainha da tua saia rota,/ela me faz lembrar o pomar das tuas pernas de mulher,/que fervilham ao rubro o rio vermelho do sangue das minhas veias” (As minhas descobertas, 57); “ Olho para os teus olhos,/a dádiva divina!/Espreito os teus quadris,/o embuste que assassina.” (Opus Dei, 60); “Vou nadar ao mar mais alto,/atrás do cio das tuas borboletas.”; “Mesmo que ela me vencesse,/e me afogasse no precipício das tuas lulas” (Por que temer? 63).

Outros poemas ilustram fenómenos absurdos: “A laranjeira pariu caju,/”e o ventre da lagoa lá da terra,/ainda pariu dois leões, para regerem a fé da tribo.” (A Escolopendra e a Aranha, 53); retomam a força destruidora da natureza abordada no primeiro caderno: “a trovoada será o tímpano calado,/a garganta do vale engole o rio enfurecido.” (Venha, 55); evidenciam a resistência do homem através da representação de animais: “Ninguém ousará silenciar o cântico dos pássaros/espantados nesta pradaria.”; “Ninguém mudará a dieta dos ratos no celeiro de Ribaué” (Só e só para mim, 56); levantam questões: “ Saciaria a fome de leão, a melhor colheita do camponês?”; “Iria uma azagaia ao encontro do mestre pescador?” (Alma ferida, 58) e confrontam-nos com uma firmeza inabalável do sujeito-poético: “ainda assim, vergo, mas não quebro.” (Vergo mas não quebro, 59).

Ainda neste último caderno, no qual se regista um tom crítico acentuado, o sujeito-poético denuncia aspectos que o chocam no seu meio social e no país em geral e critica indivíduos que enriquecem de uma forma ilícita. Numa carta ao seu chefe, recorda-lhe que pertencem a mesma organização, por isso deviam andar na mesma direcção. Reconhece que aprendeu bastante com ele, mas critica-o abertamente por ele não cumprir com as promessas e os ensinamentos. Critica-o, severamente, por demonstrar abuso de poder e gozar de mordomias: “É para ti que escrevo, meu chefe,/Somos da mesma equipa,/E não suporto mais tantos golos na própria baliza.” “É para ti que escrevo, meu chefe,/Sim, porque me ensinaste que és tu o chefe,/o primeiro no sacrifício e o último nos benefícios./Mas tu engordaste muito, meu chefe.” “É para ti que escrevo, meu chefe./Sim, porque quando cessa o teu mandato ao serviço do povo,/o povo tem que te indemnizar com contas vitalícias/guarda-costas vitalícios, putas vitalícias,” (É para ti que escrevo, meu chefe, 64/67).

Por fim, encontramos, em “A luta continua” (68/69), uma mensagem de esperança: “Vou continuar construindo sonhos,/assando frangos,/aumentando a minha tribo,/misturada com um tom crítico, de revolta e de resistência nos versos: cegando os impostos,/oferecendo os meus bolsos magros ao meu querido Estado,/”; “ouvindo os canhões do Nuvunga no Whatsapp”;e de resignação por estar convencido que tudo continuará na mesma, quando diz: atravessando a fronteira de Goba,/puxando uma passa de Murrupula,/admirando o fio dental da Júlia,/chorando a miséria dos subúrbios/”.

Esteticamente, pode dizer-se que beleza da língua se manifesta logo, através do título da obra, com a personificação do rio ao sugerir O Parto dos Rios como o nome da obra.

A personificação é, aliás, a figura de estilo que mais se destaca na obra: “sangue preguiçoso”, “pálpebras desconfiadas”. (11); “Os lucros fugiram com os estrangeiros” (12)“converso com a bainha da tua saia rota” (57).

Para além da personificação, também nos podemos deliciar com metonímia sem que os cobradores dos chapas foram os actores escolhidos para representar aparte corrupta da sociedade: “Os cobradores dos chapas-cem comem frangos fritos roubados do casaco do patrão”.(11); metáforas, comparando as caras zangadas das mulheres casadas com uma tromba de elefante: “No sábado, serão recebidos pelas trombas das moçambicanas….” (12)”; ao associar uma jovenzinha às carnes tenras de uma animal jovem (comestível) “de faca afiada para cortar as carnes tenrinhas da Margarida” (12) e comparando o púbis com um pomar “o pomar das tuas pernas” (57).

Podemos também encontrar exageros através de hipérboles “é uma noite para ancorar a ansiedade” (14) “O cão engoliu os ossos todos” (12) “Ouvimos o vento quando ainda sobrevoa o Índico”/os nossos avós falavam com as trovoadas” (16) e repetições, às vezes, apenas para brincar com palavras: “Em Palma, as palmas são balas de AKM” (12), outras vezes para dar ritmo: Sou a escuridão, para muitos/Sou o segredo para poucos/Sou o choro/Sou as meias rotas…” (17); Ninguém ousará silenciar o cântico dos pássaros/Ninguém se atreverá a cegar o grito das maçarocas/Ninguém mudará a dieta (56).

Por fim, há a destacar o recurso às línguas moçambicanas. Estas dão um toque especial a alguns versos através dos empréstimos: badjias, madala, maheu, Nhandayeyo, ndhuku, vapfana e Xitala Mati (11, 12, 16 e 42).

Espero que esta minha leitura tenha despertado interesse e curiosidade sobre o livro.

*Texto de apresentação do livro ocorrido em Maputo, a 26 de Outubro de 2021.

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