Retalhos de eternidades

À semelhança do escritor, quando termina o livro, ao perceber que o ponto final é de facto final e definitivo, o leitor pode ser tomado por uma sensação absoluta de vazio. O silêncio que se segue das vozes dos personagens que o acompanharam durante semanas antecede, por instantes, os julgamentos e questionamentos: tinha de terminar assim? A Moysha e o António como ficam? A missão Mabora?
… reticências deste percurso a que se significa Vida.
Terminar a leitura de “Sina de Aruanda” (sob chancela da Fundação Fernando Leite Couto) deu-me essa sensação de uma certa ausência. O romance, lançado em dezembro do ano passado, foi vencedor do Prémio Literário 10 de Novembro 2019.
A bicicleta, escultura de Samuel Djive, que faz a capa do livro, percorre, simultaneamente, dois séculos, XIX e XXI, numa viagem por dois tempos distintos que, entretanto, transportam estórias que se conectam, não obstante esses tempos representarem, separadamente, as chispas da modernidade africana que começavam a espalhar-se nos Estados Unidos de América – cerca de 30 anos depois do último registo das vivências deste romance, em Harlem, Alain Locke e camaradas reivindicavam o Renascimento Negro -, em paralelo com 2005, um contexto urbano de estudantes universitários, ONG’s de ambientalistas e os interesses da História em colisão com apetites comerciais sob argumento de “desenvolvimento”.
Na fase inicial pode-se tropeçar no fio de um enredo tecido no lençol de ambientalistas que cobre alguns episódios da história moçambicana e da região sul do Índico, que na segunda metade do século XIX se mobilizou no comércio escravocrata, “negócio” em que os franceses vinham a Quelimane e Inhambane comprar escravo para plantações de cana-de-açúcar nas suas ilhas (Maiote, Reunião, Madagáscar) a contornar a interdição e consequente patrulhamento britânico no Atlântico pós abolição.
A medida que embrenhamos no texto subdividido em capítulos, entretanto, vamos percebendo que a tragédia que cai sob o Prazo de Aruanda é apenas o culminar de uma circunstância típica do contexto colonial, de subjugação racial.
Repentinamente, na hora do jantar, numa noite de 1890, a convite da Dona Luísa Noronha, de ascendência goesa, proprietária do Prazo, para surpresa do Capitão Bento, seu esposo, o Lord Sean invade a casa para capturar duas criadas mais próximas da família da casa grande, Carina e a sua mãe, mamã Lina .
Pedro Lucas, filho de Dona Luísa Noronha com o português Capitão Bento, comete, aos olhos da progenitora o pecado de se apaixonar pela filha da empregada, uma negra nativa do território onde está instalada tendo já um compromisso com a Isabel, a filha do britânico, não obstante não gostar dela. O tiro da Noronha sai pela culatra, seu único rebento é atingido por uma bala na emboscada e não resiste.
A narrativa, que se alterna entre 2005 e 1888-1895, vai tirando da cartola conflitos circunstanciais de imposição de poder – tanto na tirania colonial assim como no regime do século XXI -, a memória – os interesses britânicos e alemães depois da Conferência de Berlim em zonas do território hoje ocupado por Moçambique; aliás, em 1917 a Alemanha invadiu o norte de Moçambique com ajuda dos Macondes e Ajauas -, e a necessidade de preservação de património cultural.
Aspecto, este último, particularmente interessante para reflectir sobre a relação que temos com a preservação de um património essencialmente colonial, que simboliza a presença e a relação de dominação portuguesa sob os nativos, pois o ambientalista Daniel de Barros, depois as estudantes de Direito Maria Cristina, Angelina Manhiça (protagonistas) junto com o Fred lutam para preservar a missão da Mabora e o antigo casarão dos senhorios prazeiros (Bento e Luísa Noronha). O cristianismo, que como se sabe, foi um dos cavalos de troia para a penetração colonial e é um dos argumentos que usam para a preservação daquele espaço (?).
A questão anterior, embora não de interesse necessariamente literário, a concordarmos com Allan Bloom, é de todo relevante, pois conforme recorda o intelectual norte-americano a literatura pode ser parte inamovível da definição de determinada nacionalidade, ora vejamos os exemplos de Shakespeare para os ingleses, Goethe para os alemães e Dante e Maquiavel para os italianos até o século XX. Ou seja, a obra pode dizer sobre quem somos ou sobre quem pretendemos ser.
À semelhança de um Fernando Manuel no livro “O homem sugerido”, Óscar Wild no “O Retrato de Dorian Gray” ou George Orwel em “Na pior em Paris e Londres” temos aqui acesso ao espaço, lugares, casas, salas, quartos – o cronotopo exaustivamente refletido por Bakhtin – através da percepção dos protagonistas. Com o diferencial de neste texto de Virgília Ferrão cada um, Daniel de Barros/Pedro Lucas, Maria Cristina/Carina, Angelina/Fernando narrar, a sua vez, a sua versão dos factos. A atmosfera do romance é a reencarnação de um grupo de almas que habitaram os mesmos espaços, foram amigos e inimigos, em dois tempos distintos.
Em 2005 percorremos os espaços e as vivências urbanas de Moysha, António que é irmão do Fred, colegas da faculdade de Maria Cristina e Angelina Manhiça, as bests. É através delas e do ambientalista Daniel de Barros, pelas suas divagações, descrições e diálogos que acedemos ao espaço circundante.
Os flashbacks para o “preto e branco” das duas últimas décadas de 1800 estão traçados na lavra de Carina de Sousa – me recordando Imani da trilogia “As áreas do imperador” de Mia Couto , mas aprendeu a ler com livros deitados/roubados? –, e dos melhores amigos Pedro Lucas (Puca) e D. Fernando Costa.
Nas noites a volta da fogueira ao ritmo dos batuques os corpos dos criados dançam e cantam neste, o sempre afiado Paulo Flores captou, nosso “Jeito alegre de chorar” . Aos olhos apaixonados de Puca o rebolar de Carina é a brasa mais acesa que as das lenhas que distribuem faíscas para todos os lados. Aquele ambiente se materializa do outro lado, atrás e, ao que se percebe, a uma certa distância da Casa Grande. E o Pedro, no encanto, mostra um olhar com uma venda semelhante à do Gilberto Freyre .
O poder de não esquecer é, seguramente, uma das marcas mais reivindicadas pela narrativa moçambicana, observa Francisco Noa ao c0nstatar que a literatura tenta resgatar um tempo outro, um tempo épico ou desastroso, um tempo de proibições, de omissões, de múltiplas sujeições, de promessas não cumpridas, de paraísos perdidos, de alegrias suspensas. Ao trabalhar o passado colonial, a autora confirma o intelectual moçambicano.
Sem o habitual panfletismo de um “certo” feminismo, Virgília Ferrão traça o lugar da mulher na sucessão de eventos que configuram o seu perfil nos contextos conjeturados pelas circunstâncias enjauladas no tempo. Desde a submissa Carina até Maria Cristina, mas antes a sua mãe. MC, depois de ouvir da amiga que noutra encarnação foi Carina e Daniel de Barros o Pedro Lucas, reconhece que “hoje eu posso escolher o meu destino” .
Ferrão capta para as personagens, nossas contemporâneas, a fala, trejeitos e costumes de moçambicanos urbanos regulares. Reinventa as personagens e, de modo subtil, nos traz a natureza das relações numa realidade de ocupação imperial e outro do neoliberalismo.
Naturalmente, da geração que viveu o período anterior à independência, a transição e os primeiros anos pós (sobretudo no meio urbano, incluindo a periferia) para a actual, há uma distância da língua portuguesa que falam. As transformações da variante moçambicana se tecem num caminho que integra expressões próprias das línguas nacionais, vocábulos da variante brasileira entre outras questões. A autora não escapa, estando presentes no texto várias expressões flagrantemente do solo de José Alencar.
Não estamos perante uma autora que manipula poesia a favor da prosa, esticando esta última para dar corpo a uma narrativa, valendo-se, no essencial, pela própria estória de amor que cruza tempos, vidas, encarnações sob condução do destino que, na linha desta obra, é determinante, no final.
Este romance, “Sina de Aruanda” pode ser uma metáfora sobre as esperanças adiadas de continentes, do país do Sia Vuma , há seculos, décadas e, por que não, mandatos?

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