No olhar de um actor da utopia moçambicana


Se o intelectual tem alguma função na sociedade, é a de preservar um julgamento frio e
recto em face das solicitações da paixão
” - Bertrand Russel

A arte terá dito alguém é o privilégio de uma cultura. E o seu fundamento reside no facto da arte possibilitar uma reflexão sobre a sociedade, um questionamento sobre ela mesma. O espelho.
É certo que “À sombra da utopia quando eu era nós” (vol.1), de José Luís Cabaço, não é obra de ficção propriamente dita, mas um trabalho de memória, que como se sabe tem também a sua dose de ficção. Encontra ainda paralelo com a arte pelo facto de ser uma obra na qual o autor se expõe, se permite fragilizar-se e põe-se a nu nestes ensaios, reflexões, discursos…enfim, pensamentos.

O autor deste livro, um sociólogo moçambicano graduado pela Universidade de Trento na Itália e doutorado em Antropologia pela Universidade de São Paulo no Brasil, percorreu os corredores do poder ainda jovem. “Fomos ministros aos 30 anos”, situa Cabaço, numa entrevista a TVM, na ocasião do lançamento do livro, na Fundação Fernando Leite Couto. Desde o Governo de transição até 1986 ocupou pastas ministeriais.
Ao percorrer estes textos acedemos ao registo, questionamentos sobre um contexto delicado que coloca o país recém-criado, Moçambique, numa encruzilhada. A guerra – com várias designações: dos 16 anos, de desestabilização, civil e, mais recentemente, regista Severino Ngoenha, pela democracia – patrocinada por Pretória, que igualmente, desestabilizava Angola e o resto dos países inconvenientes, na região, é um dos nós de bico.
Estas agressões do apartheid, no fio dos artigos “Impedimentos a uma informação objectiva sobre a África Austral: Um ponto de vista africano” e “Moçambique e a estratégia do Apartheid”, foram ignoradas pelo ocidente pela postura marxista-leninista, pró-URSS, animado por carismático Presidente na liderança do país.

Pela escrita de José Luís Cabaço somos transportados para realidades de euforia e desanimo enfrentados depois da independência. Pertencentes a uma geração que acreditou na Utopia, tendo participado na luta de Libertação Nacional, talvez sustentada numa esperança- ingênua (?) – de que tudo era possível. Estamos situados no século XX, caracterizado pelo despertar (Brado Africano, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Malangatana), por guerras (de Libertação Nacional, a Guerra Fria e de desestabilização), mas também por revoluções (conquista da independência) e utopias (desenvolvimento do país e libertação da região).
Este século que, para o ocidente tombou com o Muro de Berlim e para nós com a morte de Samora Machel fabricou “o homem que serve animado por um entusiamo cego, talvez, admitamo-lo, baseado em razões que julga sólidas”, descrito por Eugénio Lisboa, publicado no semanário A voz de Moçambique, em 1963. Um Homem que lutaria por uma causa colectiva.
Num paralelo com “Aqui há ópera? Histórias daqui e dali”, de Álvaro de Carmo Vaz, “À sombra da utopia quando eu era nós” contextualiza, preocupada, a ascensão de uma burguesia no seio de políticos que num passado ainda fresco para a altura em que os artigos foram escritos, o primeiro é de 1984, gritavam vivas as mensagens de luta pelo progresso da classe dos trabalhadores (proletariado), pela revolução e causa socialista. A desilusão de ver desmoronar uma causa, a degradação da moral e todos os vícios que nos conduzem a famosa tenda mediática (uma série? Netflix é privilégio), reflectem-se igualmente no livro.
“Para a grande imprensa internacional, países como o meu, Moçambique, começaram por não existir. Quando nascemos, somos classificados segundo um critério de preconceitos” (pag. 29), escreve, a iniciar o artigo que esclarece que no calor da Guerra Fria a imprensa global quando se deslocava a África Austral, instalava-se na África do Sul.

Com uma estrutura governamental sólida e financeiramente robusta, o regime de Pieter Willem Botha investiu em serviços de relações públicas que realizava conferências de imprensa sobre a região. Nessas comunicações eram entregues dados enviesados, omissos e, nalguns casos, mentiras – fake news não é mérito do século XXI – aos correspondentes internacionais e a imprensa local. Quando chegavam a Moçambique e a qualquer outro país da África Austral, recorda José Luís Cabaço, apenas vinham confirmar o que receberam no território que lhes dava regalias próximas das que estavam habituados no ocidente.
A alternativa encontrada para contornar esse quadro foi limitar o acesso a informação, como forma de se proteger de uma luta que além de bélica e geopolítica, era ideológica. “Em face dessa espúria aliança de conveniência, os Ministros da Informação (sua pasta da época) concordaram em realizar uma reunião no Zimbabwe para analisar os problemas, se definir uma resposta política concertada e se coordenarem as ncessárias acções de autodefesa” (pag.33).

Do encontro resultou, anunciado no dia 31 de Julho de 1983, a Declaração de Kadoma, no qual se estabelecia que os correspondentes internacionais estacionados na África do Sul só entravam nos países da região mediante convite dos governos locais. Essa directiva foi, entretanto, como o autor reconhece, apropriada para outros fins, obscuros, através dos quais os “sanguessugas” do sistema se escondem.
No início de cada artigo há uma nota contextualizadora sobre o conteúdo de facto, que situam, sobretudo aos mais jovens. Que são uma mais-valia. Por outro lado, este livro entra para a galeria de memórias que tem sido impressa em autobiografias e outros géneros literários. E encontra eco (ou faz eco) a proposta dos filósofos Severino Ngoenha e José Castiano sobre “Uma terceira via”.
No início escrevemos que se põe a nu, expõe-se porque os artigos reflectem o seu pensamento, as suas posições que podem ter sido acertadas assim como equivocadas, mas foram na posição de governante que tem o poder sobre a vida de um país, mas acima de tudo, de pessoas, moçambicanos.

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