O Caçador de Elefantes Invisíveis enquanto Lugar do Sensível: entre Peripécias e Humor Irónico

Escrito por Léo Cote

O Caçador de Elefantes Invisíveis chegou-nos pela voz de uma poeta de dizer, isto é, fragmentos dele, dois ou três contos da colectânea. No dia do lançamento da obra, na Fundação Fernando Leite Couto, Loide Nhaduco deu vida aos contos e pôs-nos a reflectir sobre a literatura e a produção miacoutiana, fazendo-nos regressar à Vozes Anoitecidas (1987).

Ao entrarmos em contacto com a obra, à medida que fomos saltando de um para o outro conto, fomo-nos dando conta de que os contos e a sua estratégia de criar mundos resultavam de um diálogo entre os arquétipos da literatura do fantástico e a pós-distopia, incorporando ou rejeitando quer uma quer outra, como se estivesse à procura de multiplicar os seus parâmetros, recusando-se a fórmulas simples e redutoras.

Não é precisamente a distituição da preeminência dos tabus estético-literários e os seus modelos que se encontra toda a acção dos processos criativos inovadores do artífice literário, a qual é reforçada pelo facto de a modernidade se caracterizar pela intenção de destruir a tradição e de inovar radicalmente, mesmo que seja igualmente verdade que os tempos contemporâneos são tempos de cansaço, da exaustão? Até por a angústia da influência e existencial actuam como leitmotif e empurra o autor a dar corpo estético uma série de códigos, imagens, ideias, etc., que ao se projectarem em obra de arte se pretende mestre de si própria, e de “pôr em circulação contínua da cultura instrumento de novos materiais, de novos significações”(Lipovetsky, s/d: 83).

Assim, do mesmo modo que a produção miacoutiana prolonga a literatura do fantástico, prolonga também, a despeito de sua interpelação subversiva, a literatura pós-distópica. Daí a obra do Mia não introduzir uma ruptura absoluta com o passado que a constitui e o presente que a interpela, ainda que seja para destruir os seus alicerces. Num gesto de dessacralização de tais modelos. Em Mia Couto parece já não haver um tema privilegiado, como foi com o Mia da primeira fase (que procurava desconstruir os signos ideológicos da Primeira República), por isso entrar o tema da Covid-19 e do isolamento social na equação do mundo de papel.

A obra miacoutiana apresenta-se como se se reunisse à vida e saisse para a rua, porque, afinal, “no momento em que arte se torna cosmopolita, já não há unidade, coexistem nela tendências mais resolutamente adversas”, como nos assegura Lipovetsky (s/d: 87), o que pressupõe maior possibilidade de disrupção estético-literária e dos sujeitos representados. Não é por acaso que, em O Caçador de Elefantes Invisíveis, as personagens estão votadas a solidão (homo clausus), a um tipo de solidão que o impede de ser ele mesmo e de ter um grau de alegria e de satisfação, ao surgirem como figuras deslocadas. Fazendo o leitor mergulhar num universo de sensações, tensões e de desorientação, onde o mundo de papel e a consciência ledora se perturbam.

Sem dúvida, há de ser por isso que O Caçador de Elefantes Invisíveis se compõe a partir do insólito, da peripécia (ou anedótico), onde o humor e o trocadilho jogam um papel importante na construção da ironia e do dissonante, confundindo e desordenando a ordem reconhecível da continuidade espacio-temporal. Até porque a:

“arte moderna, longe de remeter para uma estética da sensação bruta, é inseparável de uma busca originária, de uma investigação que incide sobre os critérios, as funções, os constituintes últimos da criação artística, o que tem por consequência uma abertura permanente das fronteiras da arte”. (Lipovetsky, s/d: 92)

Assim afectando igualmente a grelha de leitura e da consciência ledora. Há de ser por isso que as histórias nos surgem inacabadas, ou parecendo terminar onde havia muito pano para manga, por isso fazer sentido as personagens surgirem encapsuladas as peripécias, sem um acabamento compositivo, estranhas as coações dos tempos das histórias.

Note-se que, segundo a própria lógica do(s) processo(s) narrativo(s) miacoutianos, os contos são uma afirmação que se constitui a partir da presentificação de um espaço de tensão, de contradição e de controvérsia, onde cada persona se situa e sai dos espaços de invisibilidade. Como se propusesse que o objecto de figuração em O Caçador de Elefantes Invisíveis fosse do tipo cognitivo, num acto de crítica a esse gesto homogéneo de construção de discursos, como nos dá mostra o conto que dá título à obra, ao ocorrerem trocadilhos, no sentido lato do termo, no diálogo entre Lauro Tsatso e a brigada dos serviços de saúde, primeiro devido à língua e depois por força dos horizontes culturais.

Com este ponto de partida, a obra do Mia Couto abre inúmeras e aliciantes perspectivas no domínio da ficção e/ou dos possíveis em geral, e da literatura em particular. Considerando agora que o objecto da figuração é o ser humano, isto é, a sua matéria significante: o discurso. A partir do qual o ser encontra o seu fundamento cognitivo enquanto produtor de significados, mesmo que todo o conto surja como uma ilha e se recorte no fluxo interminável dos discursos e da figuração, nesse jogo intersubjectivo de comunicação e/ou de intercomunicação. Até porque, como parece sugerir, os limites dos textos são definidos provisoriamente pelo ponto final, pela mudança da persona da enunciação e de cenários narrativos.

Tsatso (e não só) ao surgir como personagem principal em “O Caçador de Elefantes Invisíveis” e ao comunicar algo de si se constitui como uma voz. “Mas a voz impõe uma forma dialógica: alguém comunica alguma coisa a alguém”(Prado Coelho, 1987: 447). E essa dramatização de vozes através das peripécias e do insólito, empurram as personagens a sair do seu enclausuramento, mostrando-nos a condição irónica em que se encontra o ser humano, pois este, afinal, se define não-em-si-mesmo, mas numa interminável relação dialógica com o outro, em seu lastro cognitivo. Porque, em última instância, “Aceitar a expressão é conceder lugar a diferença”(Prado Coelho, 1987: 448).

Em Mia Couto, o problema aparece com extrema nitidez. Por um lado, encontramos nele, admiravelmente figurado, o paradoxo constitutivo das formas de expressão. Por outro, as peripécias envolvem um paradoxo de linguagem que, por exemplo, em “Guaparivás”, é singularmente evidente, em que o discurso se constrói aludindo a um pré-conhecimento a partir do qual o tecido narrativo se compõe. Num jogo de não-conscidência entre a verdade e o sentido, em que parte do significado e do tecido narrativo se estrutura de um dizer para um dizer e as personagens se configuram no campo do outro. Não é por acaso que os pais de Juliana, em “Guaparivás”, “ajeitam o lençol, beijam levemente a filha, apagam a luz”(p. 102), num gesto que há muito se tinham esquecido ou já se tinha embaciado, sendo a Juliana o leitmotif de todo o acontecer narrativo, uma vez que “Há anos que marido e mulher não se encostam assim tão cheios de corpo”(p. 103).

É por isso que, no fundo, toda a personagem surge como uma consciência-em-discurso e artificiosamente uma força social. Até porque é quando uma “consciência se materializa que ela pode agir”, numa espécie de afirmação, como diria Bakhtine citado por Prado Coelho (1987: 450), de ideologia do quotidiano, que acompanha os mais insignificantes actos do nosso dia-a-dia, e que figurados, e tendo em conta a forma como nos vão surgindo, criam efeitos de sentido e choques estético-cognitivos, ante o drama interminável da comunicação e do quotidiano. Considerando então o facto que pode desencadear o processo de comunicação: o texto. O texto enquanto recuperação e reiteração do pathos sócio-literário.

Mia procede, em O Caçador de Elefantes Invisíveis, como se a aventura do drama quotidiano, individual e passional, ao se projectar em texto literário, resultasse inevitavelmente melhor recriado, enquanto propagação do belo e da razão e/ou da incompreensão tolerante. Estamos, assim sendo, perante um processo de extensão e de unificação, isto é, da literatura pela literatura em tensão com a representação do drama social e existencial das pessoas de papel. Onde resulta um estado de coesão e coerência ontológica e estética, de onde nada se pode subtrair sem lhe roubar a qualidade e a eficácia, numa série como a de um cão a perseguir a sua própria cauda.

A peripécia, a analogia, a metáfora e a ironia são convocados em O Caçador de Elefantes Invisíveis como processos que engendram uma certa transparência, ainda que entrecortado por certos borrões e enigmas. Surgindo, assim, a voz que nos doa o universo de papel ela mesma como uma metáfora dos possíveis estético-literários e do sujeito em processo, embora nos surja enquanto biografia ficcional, nesse interminável jogo de espelhos.

Sabemos assim que, se nos textos, o sujeito da enunciação (e não só) se configura enquanto biografia é porque encontra no Cogito do enunciado o modelo do acto de consciência ao doar-nos a historia. Uma vez que é a partir da sua presentificação que ocorre a instituição de uma ordem mental (Prado Coelho, 1987: 470). Então, reguladora da leitura, o fio condutor da decodificação dos labirintos da obra. E sem o qual não a podemos deslindar, estabelecendo os laços que a fazem existir para nós e construir significados, como se uma luz outra entrasse e transformasse conjuntamente a obra e o olhar sobre ela. Ante o jogo de neutralidade fingida entre universos tão diversos e múltiplos, por onde passa um fio comum sensível e estilístico que sugere, para sermos breves, um afastamento do sentido do vivido e a dissolução do homem votado a si, no próprio fluxo das peripécias ou da consciência. Assim, se verticalizando essa instância terceira que resulta da experiência da leitura.

O tom humorístico que atravessa os contos de O Caçador de Elefantes Invisíveis é feito de estratégias e de jogo de palavras, que integra o humor como uma das dimensões constitutivas da obra, assim se incorporando como o devir inelutável de todas as suas significações e valores. O cómico encontra-se profundamente ligada às peripécias, ao absurdo, etc., num esquema quase carnavalesco e ambivalente, dando alento à leitura e/ou a fruição. Ante a crítica, que disciplina o cómico, o irónico, como um tipo de controlo ténue exercido sobre a experiência da leitura, como se ajudasse a consciência ledora a suportar e a fruir não apenas o drama do universo de papel, mas, sobretudo, o drama do quotidiano, o qual estabelece com a literatura muitos paralelos. Ainda que a obra surja pintada com uma cor tal que provoca riso e alegria, que nos permita rir da nossa própria condição para descontraidamente a contemplarmos. Daí a palavra Guaparivás inventada intencionlmente pelo pai da Juliana, num registo hiperexpressivo e cómico, traduzir os ruídos do mundo.

À medida que o comico se espiritualiza, ele permite começar a poupar o outro, tendo-o não como a presa privilegiada dos nossos pré-conceitos e sarcasmo. Tal como os narradores fazem ao nos doarem o universo de papel. Assim nos empurrando a analisar o nosso próprio ridículo, sendo, no fundo, a consciência de si, que se torna o objecto de humor e já não os vícios de outrem ou os actos extravagantes (Lipovetsky, s/d: 135). Porque afinal toda a atitude estética exige um desligar, por mais discreto que seja, para um certo exterior de mim mesmo (Prado Coelho, 1987: 480), do qual o acto de leitura não é alheio, quando mais seja a consciência de mundo.

Em Mia tal como em Dostoïevski, aqui seguindo Bakhtine citado por Prado Coelho (1987: 482), as personagens surgem para as escutarmos, para as abrirmos, para as amarmos, para as destotalizar. Não é por acaso que é no sentido de reabilitação do olhar sobre o Outro que se orienta toda a coerência de construção do tecido narrativo, em O Caçador de Elefantes Invisíveis. Por isso, recomendarmos vivamente a leitura desta última obra literária de Mia Couto, pois permite pulverizar uma rede de expectativas que a obra interioriza, revalorizando a relação com o texto-ledor, na medida em que só a partir desta é possível superar a antinomia da obra e da consciência ledora, ao conduzir à subversão, no bom sentido do termo, dos códigos estabelecidos.

Bibliografia

COUTO, Mia. (2021). O Caçador de Elefantes Invisíveis. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

LIPOVETSKY, Gilles. (s/d). A Era do Vazio. Lisboa: Relógio D’água.

PRADO COELHO, Eduardo. (1987). Os Universos da Crítica. Lisboa: Edições 70.

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